adultização e erotização / legislação / 21 de outubro de 2013

Quando a emenda acaba saindo pior do que o soneto

Texto de Rafael Venâncio*

Creio que todos os adultos têm, em algum recanto da memória onde guardamos aqueles momentos gostosos da infância, diversos registros das peripécias que aprontávamos quando pequenos. Junto com elas estão também as maiores desculpas que já inventamos – o que é normal quando se trata de crianças, ainda mais em um país onde a punição corporal, embora já se saiba de seus prejuízos para a formação, continua a ser compreendida como um recurso educacional. No entanto, espera-se que, com o desenvolvimento, a criança seja capaz de desenvolver a empatia (compreendida, segundo o psiquiatra Flávio Gikovate, como a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro desprovidos de nossas ideias e preconceitos para compreender como ele funciona), que prepara o terreno para o desenvolvimento do conceito de ética, o qual, de acordo com a filósofa Márcia Tiburi, podemos traduzir como “comportamento”, palavra formada pelo prefixo “com” (que significa aquilo que fazemos com os outros, que fazemos em conjunto) e tem em sua raiz o “portar”, ou seja, como eu me porto em relação ao outro, o que faço com o outro.

Mas vocês podem se perguntar: qual seria a relação entre criança, peripécias, empatia e ética? Recentemente, como já noticiado pela mídia e pelo MILC, uma empresa de produtos de couro direcionados ao público adulto aproveitou o “Dia das Crianças” para colocar em prática uma ação de marketing em que uma menina (praticamente uma bebê) foi exposta de forma erotizada, fenômeno ao qual dei o nome de “instagramização da infância”, pois até a famosa “duckface” (aquele bico que algumas adolescentes-mulheres costumam fazer nas fotos que publicam nas redes sociais como o Facebook ou Instagram – daí o nome) fizeram a pequena realizar. Em virtude da repercussão negativa nas redes sociais, a empresa (i)responsável decidiu emitir uma “nota de esclarecimento” em que, como o próprio nome deixa claro, tentaria esclarecer para as pessoas o ocorrido.

nota de esclarecimento

O discurso começa destacando que a campanha seria uma “homenagem” a esse dia “tão importante no cenário nacional”. Pergunto-me: importante para quem? Para a criança é que não é, pois como sabemos essa data foi criada para estimular o consumo e, consequentemente, o lucro das empresas ainda mais se considerarmos pesquisas que indicam a influência das crianças em cerca de 80% das decisões de compras da família. Se o primeiro argumento já não fosse uma bobagem completa, a empresa afirmou, com base no fato de as meninas costumarem imitar as mães quando pequenas, que tudo se tratou de “(…) uma interpretação distorcida da real intenção da empresa”. Não contente, mais adiante, reiterou: “(…) diante da interpretação equivocada da arte veiculada”, tentando, de maneira falaciosa, desqualificar o argumento de todos que, com razão, reclamaram. Pior ainda, isso foi feito desqualificando quem reclamou, isto é, como você está correto e não tenho como lhe contradizer, afirmo que você é um imbecil e não tem capacidade para compreender nossa intenção; por consequência, tudo que você disse não passa de imbecilidade.

Como já bastante estudado por áreas como a Psicologia e a Pedagogia, a infância é um período que deve ser respeitado em sua singularidade, e uma sociedade que reconheça isso deve proteger as crianças de conteúdos com os quais ainda não estão prontas para lidar e que podem gerar problemas futuros na autoimagem e autoestima, por exemplo, além de contribuir para a formação e manutenção de preconceitos, estigmas e estereótipos. Dessa maneira, educar é uma responsabilidade social, compartilhada por todos os membros dessa sociedade e isso engloba a publicidade como agente que está em contato com as crianças por meio de diversos veículos, como TV, Internet, outdoors, revistas, jornais etc., o que torna impossível para pais e mães consiguirem sozinhos protegê-las de conteúdos impróprios. Dessa forma, é no mínimo injusto terem que arcar com toda a culpa quando há um time de especialistas com milhares de dólares em jogo.

Portanto, por conta dessa incapacidade natural da criança que a impossibilita de compreender os conteúdos publicitarios, pela constante desconsideração dos achados científicos que têm demonstrado os prejuízos causados no seu desenvolvimento biopsicossocial, pelo constante abuso das empresas, resultando em contínuo desrespeito às leis, à infância, aos pais e mães, aos quais sempre é atribuída a culpa, é que defendemos a aprovação doProjeto de Lei (PL) 5921/01, que visa regulamentar a publicidade infantil no país, pois as empresas não amadurecerão ou desenvolverão (como demonstrado pela ineficiente autorregulação) a empatia e a ética tão necessárias para a boa convivência na sociedade, visto que são pilares do que chamamos de responsabilidade, pois a única coisa que elas visam nesse mundo capitalista criador do “Dia das Crianças” é fazer com que os pequenos consumam ainda mais e estimulem os pais a fazem o mesmo, gerando lucro a qualquer preço, como essa empresa deixou evidente com sua campanha e com a nota (zero) de esclarecimento.

*Rafael é estudante de Psicologia e se interessa pelo assunto “consumismo” por indignar-se com a exploração de crianças pela publicidade e com seus reflexos nos comportamentos delas e dos adultos. Por isso, sempre que pode, compartilha o que está aprendendo com o objetivo de ampliar e mobilizar a rede de pessoas insatisfeitas com a conjuntura atual, pensando que, dessa maneira, pode contribuir, ainda que de forma singela, para criar uma possibilidade de transformação da realidade.


Tags:  #aprovaPL adultização conar erotização nota de esclarecimento PL 5921/01

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Mariana Sá




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