publicidade infantil / 29 de setembro de 2014

O enterro dos brinquedos ou o resgate da infância?

Matéria publicada anteriormente no Brasilpost, de Lais Fontenele*

Uma das características mais marcantes de nosso tempo, chamada por muitos de “era da informação e do consumo”, é, sem dúvida, a enorme influência dos meios de comunicação em nossas vidas e de nossos pequenos. Vivemos hoje conectados aos meios de comunicação e redes sociais desde o momento que acordamos até a hora de dormir. Os tempos são outros onde a conectividade e o consumo pautam nossa socialização e principalmente das crianças e jovens que crescem, hoje, acreditando que para ser é preciso ter e que preferem, muitas vezes, como apontou o documentário Criança, alma do negócio de Estela Renner, comprar a brincar. O mundo de fato mudou. Acelerou e se conectou. E nesse novo tempo podemos dizer também que a infância encurtou e se mercantilizou. A palavra foi hoje substituída pela imagem. O excesso pela simplicidade. O abraço pelo objeto. O desejo pela necessidade e a infância pelo consumo.

É fato que a criança brasileira, assim como a de muitos outros países, tem consumido, cada vez mais, diferentes mídias e, seguindo a tendência mundial, muitas vezes realiza esse consumo de forma concomitante: ouve rádio enquanto navega na internet, assiste televisão enquanto acessa o facebook, joga no computador e ao mesmo tempo fala no celular. É a geração ‘Google’, ‘Web 2.0’ ou ‘do Milênio’, como colocou Regina Assis (1). Porém, apesar dos avanços de acessibilidade da internet no país, a TV ainda é campeã na audiência entre as crianças brasileiras que passam 5 horas e 22 minutos diários, sem a mediação de um adulto, na frente da telinha (segundo os últimos dados do Ibope). E em áreas de alta vulnerabilidade social e econômica esse tempo médio chega ao espantoso número de 9h por dia (2). Ou seja, sem dúvida, já se foi o tempo em que crianças necessitavam de alfabetização formal para ingressar no mundo adulto e obter informações. Hoje basta ligar um botão. Uma nova pedagogia se instalou: a das mídias – que por meio de uma sedução “hipnótica”, falam diretamente com nossas crianças ditando os caminhos da infância. Mas, primeiro, essa aparente intimidade com as mídias não quer dizer que as crianças compreendem tudo que assistem ou acessam e, além disso, devemos sempre nos lembrar que as mídias não assumiram esse papel pensando no bem estar das crianças, mas sim porque elas são parte importante da engrenagem vigente para manter a sociedade de consumo aquecida chegando a influenciar em 80% dos processos decisórios das compras da família.

Foi também nesse contexto que a publicidade dirigida às crianças entrou em cena com grande força – como aponta o número de 2006 que mostra que o investimento publicitário destinado à categoria de produtos infantis foi mais de R$ 209 milhões (3) – passando a endereçar ao público infantil mensagens abusivas de apelo ao consumo. Mensagens e imagens que se aproveitam da vulnerabilidade infantil para vender, tornando a criança a principal influência de compras dos produtos infantis à frente inclusive das embalagens e personagens famosos (4). É claro que a publicidade não é, sozinha, a grande vilã no problema do consumismo na infância, mas não podemos mais negar seu enorme impacto, quando dirigida ao público menor de 12 anos, para o desenvolvimento infantil saudável. E talvez seja por isso que o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Infância e Adolescência) soltou a resolução 163 em 4 de abril recente que versa sobre a abusividade da publicidade dirigida às crianças reforçando o que já estava previsto no art 37 de nosso Código de Defesa do Consumidor – que a publicidade quando se dirige a uma população vulnerável é considerada abusiva e, portanto ilegal.

Que as crianças se comunicam e fazem uso da tecnologia, hoje vigente, muitas vezes melhor do que os adultos, não nos restam duvidas, mas o que não podemos esquecer é que as crianças são seres em peculiar desenvolvimento psíquico, afetivo e cognitivo e até os doze anos de idade, a maioria delas, ainda não tem a capacidade crítica e de abstração de pensamento formada para compreensão total de um discurso persuasivo contido em mensagens veiculadas pelos meios de comunicação. Por isso são elas muito mais vulneráveis aos apelos do consumo que nós adultos e assim, acabam sofrendo cada vez mais cedo as graves conseqüências relacionadas ao problema do consumismo infantil, tais como: obesidade infantil, erotização precoce, diminuição das brincadeiras criativas, consumo precoce de tabaco e álcool, estresse familiar e violência. Além disso, vale destacar, crianças menores ainda confundem, muitas vezes, a publicidade com conteúdo da programação (5), e se encontram numa fase essencial de formação de hábitos tanto de consumo como de sociabilidade.

Que nossas crianças serão consumidoras no futuro também não nos resta dúvida e para ajudá-la a ser não somente uma consumidora, mas cidadã mais consciente, precisamos da ação conjunta nas frentes da educação e regulação. Todos os agentes sociais e aí se incluem família, Estado, educadores e mercado têm a responsabilidade compartilhada de ditar novos paradigmas para nossas crianças. A família deve dar exemplos mais humanos e menos materialistas, a escola deve formar cidadãos e consumidores mais conscientes, mas também é preciso que o Estado regulamente a publicidade dirigida às crianças para que os excessos comecem a ser coibidos. Numa sociedade de consumo como a nossa sabemos que a publicidade é a alma do negócio, pois estimula as compras, aquece a produção, gera empregos e renda sendo considerada um fator relevante no processo de desenvolvimento econômico de um país. Entretanto nenhum tipo de desenvolvimento, seja ele econômico, tecnológico ou científico, deveria ser mais importante que o desenvolvimento psicológico, cognitivo e emocional de uma única criança. A infância é o prefácio de um futuro mais justo e para tanto precisa ser protegida de apelos comerciais.

Crianças não precisam de publicidade para aprender a consumir de forma mais consciente e para fazer escolhas. Antes de serem consumidoras as crianças precisam ser cidadãs para que possam escolher de forma mais autônoma, crítica e consciente. Crianças precisam brincar, precisam de olhar, de palavra, de escuta e de proteção- e não estamos falando aqui de superproteção. Crianças não precisam se machucar para aprender a não se colocarem em risco, mas crianças – sem dúvida- não precisam de excessos. Isso sim são os limites para uma infância saudável.

Não façamos, portanto, o convite para que nossas crianças amadureçam ou cresçam antes do tempo. O problema da mercantilização e adultização da infância é urgente e não pode mais ficar restrito à esfera familiar, pois suas conseqüências têm impactos graves ligados à economia, sociedade e ao meio ambiente. Crianças e adolescentes são prioridade absoluta em nossa Constituição Federal e devem ser salvaguardadas, em sua fase peculiar de desenvolvimento. Nossas crianças, como bem colocado por Neil Postman, são as mensagens que enviamos a um tempo que não veremos. São o prefácio de um mundo mais humano e menos materialista. Crianças precisam sim ser protegidas em seus direitos e o principal é o de ter infância. Façamos essa reflexão!

1 De Assis In: Infância e Consumo. Estudos no campo da Comunicação. Instituto Alana. São Paulo, 2009.
2 GUARESCHI, Pedrinho, Relatório da Pesquisa ao CNPq Mídia e Ética, 2004/2005
3 IBOPE/ Monitor , 2006
4 Interscience. Informação e Tecnologia Aplicada. Outubro de 2003
5 Bjurström, Erling, ‘Children and television advertising’, Report 1994/95:8, Swedish Consumer Agency

(*) Lais é Mestre em Psicologia, mãe e consultora do Instituto Alana e escreveu este texto para o Brasilpost em 8/8/14


Tags:  #publicidadeinfantil #publicidadeinfantilNÃO consumismo educação proteção à infância regulamentação

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Mariana Sá




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