adultização e erotização / destaque_home / 23 de fevereiro de 2015

Quem precisa de espumante infantil

Texto especial para o Milc de Mariana Sá*

Não me lembro de nenhum réveillon em que meus filhos sofreram por não beber algo parecido com um espumante. Aliás nem me lembro deles terem sofrido se por acaso no momento do brinde não estarem com um copo da bebida na mão. Os seus já sofreram por isso? Estou perguntando a você, porque não gosto de generalizar o comportamento dos meus filhos e fico imaginando que “num mundo ideal” um produto só surge quando há uma necessidade, mas “neste nosso mundo” muitas vezes a necessidade nasce justamente da existência de um produto.

Não sei se existe criança que tem esta demanda por brindar com bebidas que explodem e que fazem cócegas no nariz, que nós adultos aprendemos a ter. Sim, aprendemos! Aprendemos que os bons momentos merecem uma rolha voando pelos ares, um pouco de espuma derramada e copos cheios de líquidos borbulhantes para levantarmos e fazermos, enfim, o clássico tim-tim! Isso não é inerente à nossa natureza: somos adestrados a relacionar momentos felizes com brindes e cócegas no nariz.

Como meus filhos nunca verteram lágrimas ou bateram os pés no chão querendo brindar e sentir cócegas no nariz, a notícia do lançamento de uma bebida açucarada e gaseificada contida numa embalagem de formato de espumante e decorada com personagens infantis me causou apenas asco. Em momento algum me deslumbrei diante da prateleira e pensei coçando a carteira: “que legal, agora meus filhos podem brindar e sentir cócegas no nariz com uma bebida que não tem álcool, mas vem no mesmo formato da minha E com o personagem favorito deles: vou comprar uma para cada, a de princesa para a mais velha e uma de carros para o caçula! Ieba!!!”

Não condeno a mãe que pensou exatamente assim. Eu pensaria se não estivesse tomado minha vacina Milc. Fui várias vezes ao mercado e me aborreci nos corredores pensando que há alguns anos eu mesma seria a adulta que escolheria para meus filhos duas daquelas garrafas coloridas junto com a garrafa da bebida que fui ensinada a tomar na noite de réveillon: as garrafas infantis estão na mesma gôndola das garrafas alcoólicas, poxa!

Vejo muitos problemas na existência de uma bebida espumante sem álcool com personagens estampados:

– a imitação de um hábito adulto condenável: correlacionar momentos da vida ao uso de uma droga como o álcool (sim, álcool é droga e talvez uma das piores justamente por ser legalizada e incentivada. o álcool causa problemas graves para os indivíduos e para a sociedade, especialmente quando os que bebem não o fazem de maneira bem regulada) e fazer as crianças participarem desde momento com tamanho realismo – formato da garrafa, bolhas e a possibilidade de ser estourada – é acelerar demais as coisas.

– a ingestão de uma bebida açucarada e cheia de aditivos: o conteúdo da garrafa infantil é análogo ao de uma embalagem de refrigerante, mesmo sem álcool é completamente inadequada para crianças.

– a cobrança abusiva por uma bebida análoga a um refrigerante: o líquido é idêntico, só muda a garrafa. É o máximo do valor agregado a um produto de pouca qualidade.

– a criação de uma necessidade que só existe para indústria de bebidas e de entretenimento: crianças não precisam deste produto. Crianças não precisam imitar os adultos com tamanho realismo. Quem precisa disso é a indústria! O que fizeram foi agregar valor a um produto já sem valor para manter sua lucratividade: refrigerantes e sucos artificiais são produtos renegados pela população informada. Colocar um personagem na garrafa transforma o produto que era desprezível em desejável.

– adultização precoce: isso acontece quando queremos que nossos filhos se comportem da maneira como os adultos (ou quando eles se comportam assim mesmo quando não queremos) . E precisamos diferenciar o brincar lúdico onde crianças imitam aquilo que os adultos fazem da angústia de possuir e se conduzir como adultos. Precisamos diferenciar a inclusão das crianças nos nossos momentos felizes da adultização pura e simples: crianças precisam ser crianças, mesmo na companhia dos adultos.

Enfim, tudo isso para dizer que, agora que acabou o carnaval e que o ano começou de verdade, temos alguns meses pela frente para exigir que os fabricantes e comerciantes brasileiros não coloquem este produto abjeto nas prateleiras. Temos alguns meses pela frente para nos juntar àqueles que estão organizados para exigir do Estado que cumpra seu dever de proteger as crianças, nossa prioridade absoluta. Temos alguns meses para espalhar o quanto o ato aparentemente inofensivo pode ser prejudicial aos nossos filhos. Temos alguns meses para organizar um mega boicote às empresas que fabricam isso deixando de comprar não apenas a linha infantil, mas todos os produtos da empresa. Boicotemos!

Apoie a hastag #SomosContraEspumanteInfantil no facebook e assine a petição http://chn.ge/1DHYR5I

(*) Mariana Sá é mãe de dois, publicitária e mestre em políticas públicas. É autora do blog materno viciados em colo e é cofundadora do Milc. Mariana faz regulação de publicidade em casa desde que a mais velha nasceu e acredita que um país sério deve priorizar a infância, o que – entre outras coisas – significa disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças. Membro da Rebrinc


Tags:  adultização bebidas alcóolicas consumo licenciados licenciamento

Bookmark and Share




Previous Post
Crianças na nuvem
Next Post
Publicidade nas escolas



Mariana Sá




You might also like






More Story
Crianças na nuvem
Texto especial para o Milc de Fernanda Café* Imagine um brinquedo que fale com a criança. Não, não estamos falando...