criança e mídia / maternidade / 10 de junho de 2015

A lógica das crianças

Texto de Joyce Guerra Jobis*

A lógica da Mariles me impressiona.
Contava para eles aquela história do chefe de aldeia que sempre dizia “depende”, quando as pessoas diziam “azar” ou “sorte”. Vocês devem conhecer.

Era uma vez uma aldeia onde só havia um cavalo para uso geral… E esse cavalo fugiu. Os aldeões falaram: “que azar!” e o chefe falou: depende…
Então foram todos atrás do cavalo. Quando o encontraram, ele estava junto de mais outros dois cavalos selvagens. Então os aldeões trouxeram o cavalo fujão, mais ou outros que haviam encontrado. As pessoas disseram: “que sorte!” e o chefe da aldeia disse: “depende”… Então o filho do chefe da aldeia quebrou a perna, tentando domar os cavalos selvagens. Todos disseram: “que azar!!” e o chefe disse:depende…
Mais tarde, todos os homens saldáveis da aldeia foram convocados para a guerra, menos o filho do chefe da aldeia, que estava com a perna quebrada. “Mais que sorte!” disseram todos.. E o chefe disse: “depende!”

Terminada a história, fomos conversar sobre e a Mariles soltou:
– Tudo começou a dar errado quando eles levalo aqueles cavalos pa aldeia… Sabe puquê? Eu vou dizer: puque o cavalo não era deles. Dá tudo errado, se a pessoa tentar pegá aquilo que não é dela.

Diminuir o tempo de tela ao máximo foi a coisa mais maravilhosa e mais desafiadora que fizemos. Sempre foi pouco, mas agora é menos ainda…
Desde então, meus filhos passaram a ter algo que estavam perdendo: curiosidade.
É que essa história de ver tudo prontinho, na tv e nos jogos, estava roubando deles o sabor da expectativa, a doçura da descoberta do mundo a sua volta.
A moda agora é me pedir para colocá-los sobre a janela – e haja coluna para bancar!

Eles ficam de pé no parapeito e começam a se extasiar:
– Olha, eu estou vendo o outo lado do mulo!!!
– Eu tou gandão, do camanho do teto!
– mamãe!!! mamãe!!! eu estou vendo uma coluja!!! Mas uma coluja de vedadeeee!!!
– Mamãe, se eu fosse grande, sabe que que ue fazia? Pegava todas as cadeiras, todas as escadas do mundo, pa pegar a lua!
– Mamãe, bota eu da ota janela?
– Mamãe, precisamos visitar a casa dos nossos amigos pa pedir pa subir na janela deles, pa a gente poder ver que da pa ver dos quintais das casas deles!
– Se eu subir no telhado, posso queimar o dedo no sol?
– Mamãe, um dia, eu vou vilá estela.. E vou ficá mandando bebezinho pala todas as mamães que querem bebês. Elas vão dizer: “quelo um bebÊ!” e eu vo dizêr: você tem calinho? E vou mandar um bebezinho pa barriguinha delas. Por isso eu tenho que ficá aqui, bem no alto, pa sabê o que as mães tão pedindo.
– Mamãe, se a gente ficar bem quietinho, A gente vai ver quando Deus passar por aqui?
– Mamãe, por que todos os passarinhos do mundo estão naquelas avres?

Imagem da web

(*) Jobis é mãe de Estêvão, Mariles e Cristóvão. Cega total, é ativista pelos direitos das pessoas portadoras desta deficiência, bem como da criação baseada na não-violência e no consumo consciente.


Tags:  curiosidade educação imaginação proteção à infância telas

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Mariana Sá




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