destaque_home / maternidade / 29 de julho de 2015

Sobre tudo o que somos capazes

Texto especial para o Milc de Vanessa Anacleto*

Feche os olhos. Não, agora. Depois da leitura deste texto. Pense. Sim, agora. Pense em tudo o que seus avós eram capazes de fazer. Pense em como ela fazia o pão da família, como engomava a roupa, como marinava as carnes com um dia de antecedência, pense em como ela pariu em casa, como amamentou sem grandes problemas, como alimentou e criou os filhos, como conseguiu lidar com as diferentes fases de acordo com sua própria consciência, procurando o conselho das mulheres que vieram antes. Muitas das nossas já trabalhavam e nem por isso deixaram de fazer todas aquelas coisas. E eles? Eles costumavam consertar seus próprios carros, sozinhos ou com a ajuda de algum amigo. Eles faziam também os consertos da casa e muitos deles as erguiam com os próprios braços ou com ajuda dos vizinhos, avós hoje de outras pessoas como você. A diferença entre nossos avós e seus netos? Eles eram capazes e sabiam que eram. Nós somos capazes mas nem sonhamos que isto seja possível. Nos venderam a ideia de que não podemos fazer determinadas coisas. Elas são dolorosas, cansativas e demoradas. Depois de vendida esta ideia foi incrivelmente fácil fazer com que compremos todo o resto.

Não somos capazes de parir em casa. Isso é muito complicado. Parir é doloroso, primitivo e feio. Muito mais cômodo passar o bisturi, andar curvada durante semanas e não ser capaz  sequer de levantar os braços no dia seguinte do parto. Amamentar é muito difícil, precisamos de pingar hormônios no nariz e de um treinamento específico, se quisermos muito teremos que enfrentar também os dedos apontados de todos os que pensam que é algo que não pode ser feito em público. Difícil, complicado e feio. Cozinhar é  trabalhoso, coisa do passado. O ato básico de sobrevivência ficou relegado a segundo plano. Não aprendemos a cozinhar mais em casa, precisamos de programas de tv com chefs de cozinha que mostram como pode ser prazeroso e apesar de uma minoria se aventurar na cozinha a partir dos chefs, a maioria prefere o marinado pronto cheio de glutamato monossódico. Nossos filhos não precisam mais que cozinhemos para eles, existe a industria de produtos alimentícios sempre pronta a oferecer a última novidade em praticidade e sabor duvidoso. Paladar, bom isso não existe mais, está padronizado. Quem precisa de paladar, precisamos de praticidade de coisas que nos libertem daquilo que pensamos que não somos capazes de fazer.

“Seus problemas acabaram”

Quando isso começou? Quando rompemos a barreira entre a liberdade e a servidão? Quando deixamos de sonhar por realizações repletas de sentido e passamos a querer crescer para casar com uma festa bonita, trabalhar muito e viajar nas férias? Quando tudo mudou de sentido? Meu palpite é: depois da Segunda Grande Guerra e desconfio que a mudança tem fins meramente comerciais. Toda a população ocidental passa a viver para um único fim, o consumo. De coisas, serviços, estilos de vida. Viver passa a ser aspecto secundário em um mundo que gira apenas para satisfazer desejos de consumo da maioria e lucro da minoria que comanda o espetáculo. Será que a riqueza de poucos nos faz assim tão bem? Esta é a pergunta do novo livro de Bauman que não li, mas tenho certa desconfiança sobre qual seja a resposta. Diante da realidade que se apresenta, consumir em demasia já nem é mais a questão imediata mas o fato de depositarmos na indústria a fé para solução para todos os nossos problemas.

Estamos entregues à industria desde cedo. Quando crianças, os comerciais de tevê nos dizem como e com o que brincar. Não precisamos pensar, a indústria de brinquedos pensa por nós. Não precisamos brincar, o brinquedo brinca por nós. Não precisamos sonhar, a indústria nos vende um sonho pronto dizendo que é nosso. E de quebra tiramos onda com os amigos no melhor estilo “eu tenho, você não tem”. Daí crescemos e achamos que sabemos o que queremos, quando quem sabe são os netos daqueles poucos que continuam lucrando com nosso estilo de vida contemporâneo.

Nossos avós não viam publicidade infantil na tevê e, quando adultos, mesmo a publicidade de rádio e tevê antigas, apesar de muitas vezes politicamente incorretas, não eram tão massivas. Por isso, e não porque é mais prático, minha avó fazia seu marinado. A comida simplesmente ficava excelente. Por isso, e não porque é mais prático, meu avô consertava o que quebrava em casa antes de pensar em jogar fora. Por isso, e não por que é mais prático, as bonecas da minha mãe eram de pano. Agora, tudo mudou e parece que não podemos escapar. Então eu volto ao pedido inicial : e se novamente acreditássemos que somos capazes? Feche os olhos.

(*) Vanessa é mãe do Ernesto, blogueira e autora do livro Culpa de mãe. Por causa disso tudo, ajudou a fundar o Milc e luta por um futuro sem publicidade infantil. É autora do blog materno Mãe é Tudo Igual e membro da Rebrinc 


Tags:  ativismo autonomia sociedade contemporânea sociedade de consumo

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Mariana Sá




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