Texto especial para o Milc de Rosely Arantes*
Minha amiga Mariana Sá, mais uma vez, me joga uma bomba chiando nas mãos. Ela me conhece tão bem que sabe como eu adoro um desafio. Topei de cara, mesmo sem saber ao certo quando eu conseguiria escrever o que segue abaixo. Essas palavras, que não prometo serem poucas, foram redigidas com muito carinho para nós, mães, pais e responsáveis e ardorosos fãs de nossas crias.
Como não é a primeira vez que escrevo para o MILC e por também e ousadamente me considerar parte dele, ainda que um pouco distante ultimamente. Mas não tanto que não me permita tê-lo sempre presente nas minhas aulas no projeto Ser Conselheiro (formação específica para os conselheiros tutelares e de direitos, na UFRPE), ou nas minhas citações nos diversos locais e conversas por onde passo e escrevo. Sei que deveria tecer apenas alguns comentários e ajudar na provocação do debate. No entanto, percebi aí uma chance de ampliar o debate sim, mas aprofundá-lo, pois o tema é mais sério do que imaginamos (pelo menos se tornou para mim).
Realmente me nego a acreditar que qualquer mãe, pai ou responsável “queira mal a sua cria”. Isso realmente não me passa pela cabeça e coração. Como mãe autônoma com uma filha única, sei o quanto é desafiador trabalhar fora, sustentar a casa, cuidar da cria, da casa, de outros entes familiares, cuidar-se (última opção quase sempre, né?), gerenciar grana, acompanhar a formação, prestar atenção ao que assiste na tv, ao que lê, aos presentes que ganha/deseja, manter a ordem, encontrar um profissional para trocar a torneira da pia ou a resistência do chuveiro… enfim… e sei também como é exigente no meio desse (quase caos) dar conta de cabelos bem cuidados, tratados e bonitos. Isso requer tempo, paciência e dinheiro.
Isso é uma coisa.
Na minha teoria, um responsável (vou chamar agora assim para não ficar tão repetitivo, mas saibamos que estamos falando das mães, dos pais e/ou responsáveis pelas crianças) só coloca sua cria em risco por pura falta de conhecimento ou compreensão do que está acontecendo e as respectivas consequências.
A outra coisa diz respeitoao mundo onde vivemos. Acreditoque nós, atuais responsáveis, fomos concebidos e criados, construímos nossos laços e afetos, conhecimentos e compreensões num mundo de classe. O que significa que uma parcela da sociedade manda/detém/possui a produção e as riquezas e a outra sobrevive, vendendo a força do trabalho. Assim, precisamos trazer alguns elementos para essa roda.
Falo aqui do aparato ideológico para legitimar e garantir que essa minoria que manda (porque senão não estaríamos num estado democrático, de direito e capitalista!) dita as regras de convivência, da massificação do pensamento, da determinação do que é apropriado. Mas o que isso tudo tem a ver mesmo com o tema, vocês podem estar me perguntando. Fiquem calmas/os porque todas/os sabemos que pra se fazer uma boa feijoada tem que misturar muita coisa e acrescentar a pimenta, né? Então vamos lá porque daqui a pouco esse caldeirão começa a borbulhar…
Jogo aqui uma pergunta: vocês realmente acreditam que um responsável, adulto e ciente do seu papel de cuidador/a colocaria sua/seu cria em risco apenas por uma questão de estética? Só isso seria o bastante para uma pessoa submeter uma criança, de apenas dois anos, a um tratamento de alisamento capilar, sendo esse procedimento um crime?
Vamos lá. Quantos de nós conhecemos a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC N° 15, de 24 de abril de 2015, publicada no Diário Oficial da União n° 78, de 27 de abril de 2015?
Quantos mesmo? Quanto braços ou crachás levantados?
Essa resolução “Dispõe sobre os requisitos técnicos para a concessão de registro de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes infantis e dá outras providências.” Aqui ficam estabelecidos os produtos – “cosméticos” -, direcionados ao público infantil que diz: §1º Considera-se público infantil crianças entre 0 (zero) e 12 (doze) anos incompletos.” Na lista apresentada, constam, no anexo I – Categorias e Grupos de Produtos Infantis:
I – Produtos de Higiene Pessoal
a) Condicionador com e sem enxágüe; b) Dentifrício com e sem Flúor; d) Desodorante Axilar e Pédico; g) Enxaguatório bucal com e sem Flúor com ou sem ação antisséptica;i) Óleo capilar/corporal; j) Pó corporal (Talco/Amido).
l) Produto de limpeza/ higienização
a) Sabonete; b) Xampu para cabelo e/ou corpo
II – Cosméticos (OI?)
a) Batom e brilho labial; b) Blush/Rouge; c) Esmalte para as unhas; d) Fixador de cabelos; e) Hidratante para a pele; f) Maquiagem capilar/corporal; g) Máscara capilar; h) Pó facial; i) Produto para inibir o hábito de roer unhas; j) Produto para prevenir assaduras; k) Produto pós-sol; l) Protetor Labial com e sem FPS; m) Protetor solar; n) Reparador de pontas para os cabelos; o) Repelente de insetos; p) Sombra
III – Perfumes
a) Água de colônia; b) Perfume.
Questionei a Anvisa nacional que me passou para a local e me deu a seguinte resposta quanto a solicitação da regulamentação sobre alisamento capilar infantil: “A RDC 15/2015 estabelece os produtos que são permitidos para uso em crianças. A norma não prevê o registro deste produto para uso infantil. Com isso, a utilização torna-se proibida.” No entanto, segundo a própria determinação, em seu Art. 17. “O descumprimento das disposições contidas nesta Resolução constitui infração sanitária, nos termos da Lei n. 6.437, de 20 de agosto de 1977, sem prejuízo das responsabilidades civil, administrativa e penal cabíveis”.
Ora, se eu determino algo e não especifico as penalidades para as infrações pela não observância da regra, o que eu estou fazendo mesmo? Para que me serve uma lei que ,se não cumprida, não incide nem numa multinha?
Fechamos um ponto: o da informação às pessoas.
Próximo: Das consequências, ou possíveis consequências do uso em crianças.
Segundo diversas matérias da imprensa nacional, há o alerta para o uso desse tipo de produto tanto para adultos quanto para as crianças há vários anos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisainforma sobre os riscos de reações alérgicas e outra sequelas mais graves, inclusive para o risco de câncer.
Segundo matéria apresentada pelo Fantástico, em 03/11/2013 (disponível aqui), “as promessas de escovas permanentes que deixam os fios mais bonitos sem fazer mal à saúde, e que seriam permitidas até para crianças e grávidas, são falsas. Por trás desses rótulos, estão substâncias que liberam o componente mais perigoso, e proibido, em tratamentos nos cabelos. O formol está de volta. Só que agora, escondido”.
Mas hoje, penso que já é bem sabido para “gregos e troianos” que o formol realmente faz mal à saúde. Já foram comprovados diversos problemas como, queimaduras no couro cabeludo, irritação no nariz e na garganta e até câncer, em casos extremos de intoxicação. Incluindo aí sequelas quase permanentes em algumas mulheres que submeteram a aplicações com este produto.
Apesar da Anvisa, em 2009, ter proibido a venda do formol em estado puro, os fabricantes encontraram um jeito de burlar a lei e diversos produtos são vendidos com ele só que com outros nomes. São conhecidos como redução de volume, domador de cachos, alinhamento dos fios, máscaras hidratantes e até botox capilar.
Mas como eles realmente agem? Para quem não quer assistir a matéria, transcrevi aqui alguns pontos que considerei importantes, a título de esclarecimento.
- Segundo a professora de oxicologia, da UFRJ, Nancy dos Santos, “os fabricantes acrescentam substâncias que, quando aquecidas, com chapinha ou secador, liberam o formaldeído, que é o formol na forma gasosa”. O produto, quando é passado nos fios, de fato ainda não tem formol. Ele vai penetrando nos cabelos durante o tempo de espera recomendado pelos fabricantes. Mesmo que o cabelo seja enxaguado após a aplicação, os fios já absorveram os componentes. Quando as mechas recebem o calor do secador e da prancha, o produto sofre uma reação química. O aquecimento provoca uma quebra, uma decomposição dos componentes, liberando o formol que estava escondido dentro deles. Por isso que as empresas indicam o uso do secador e da prancha, para que as várias substâncias químicas que podem liberar formol apareçam. A que tem sido mais usada pela indústria cosmética se chama ácido glioxílico. E a Anvisa também já emitiu alerta sobre esse produto.
Agora, se isso tudo compromete a saúde dos adultos, imagine o que não faz para gestantes e crianças. Para o obstetra Paulo Nassar “o risco de prematuridade é gravíssimo associado com uma série de outras complicações, como por exemplo, a própria paralisia cerebral, complicações fetais e recém-nascido, tão graves como a má formação”.
Já para as crianças, que possuem a pele mais fina do que os adultos, os riscos desse tipo de aplicação são muito maiores e mais severos. Não precisamos de um especialista para concluir isso, não é mesmo? Mas foi também afirmado pela pediatra Kerstin Taniguchi,entrevistada na matéria.
Mas voltando ao nosso caldeirão, agora mais recheado.
Diante do que foi dito, quantos de nós conhece a profundidade do que fora exposto? Confesso que nem eu sabia tanto e, como falei acima, percebi que não estávamos apenas falando de vaidade, ter ou não paciência na hora de “domar os cachos” ou coisa parecida. Como eu digo: informação é tudo! E nessa linha, volto ao que também já citei: não creio que um responsável, em sã consciência, jogue suas crias aos leões dos fabricantes de produtos de alisamento e/ou “profissionais donos de salão (pra não dizer comerciantes capitalistas onde o lucro é quem dita a moral) simplesmente por querer um “cabelo mais fácil de pentear”. Lembremos que existe um estímulo diário e capilarizado que nos diz, constantemente, que o que é belo é o corpo magro, branco e com cabelos lisos e loiros.
Agora vamos ao último ponto e pra mim o mais importante: a questão do racismo que nós brasileiras e brasileiros (claro!) sabemos tão bem que ele não existe, aqui no Brasil, não é mesmo? Mas como diz a frase das bruxas voando nas vassouras: “y no creo em brujas, pero que lashay, lashay” (não creio em bruxas, mas que elas existem, existem).
Nesse sentido, convido vocês a pensar cá comigo algumas coisas. Porque as pessoas, especialmente as mulheres sofrem tanto em busca de adequação de um modelo de beleza que não atende aos nossos verdadeiros padrões de beleza brasileira dos trópicos? Eu ando na rua, aqui no nordeste pernambucano e tantas outras cidades que tenho tido o prazer de visitar/trabalhar, e fico procurando essas mulheres brancas, altas, loiras e com aquela barriga irritantemente seca do mesmo modo que a pele, sempre limpa e lisa como se não transpirasse nunca. Mas eu não as encontro. As mulheres que vejo, aqui vou me deter às mulheres mesmo por uma questão de identidade, têm pele negra, amarelada, algumas desbotadas (como eu), mas quase nunca brancas. Os cabelos são cacheados, lisos, ondulados, brancos, negros, castanhos, azuis, rosas e por aí vai. Umas percebe-se de cara que têm dinheiro para se cuidar, pois andam com roupas em tons, modelos e adereços que reforçam seus contornos. Outras sequer um jeans básico ou um vestidinho já bem desbotado. Mas todas com algo em comum: são bonitas dentro das suas características e condições financeiras. Porque, pra mim, beleza também tem a ver com grana. Quem tem grana um personalstylist para dar as dicas de como se vestir bem contemplando sua beleza e gostos, para bancar um bom salão de beleza que respeite a sua identidade, um banho de loja que realce suas curvas e não dite a roupa pela marca que a produziu, tratamentos dentários, ou outros, para quem tiver necessidade, alimentação adequada, uma boa academia de ginástica, pilates ou seja mais o que for e ela curtir. Ah! Já ia me esquecendo de um item importante, o tempo. Esse senhorzinho que cada vez mais reverenciamos. Com isso tudo, bem administrado eu quero ver quem não é bonita aos olhos dessa sociedade que dita as regras.
Então, nesse modelo de sociedade que definiu que o modelo europeu de beleza deve ser o nosso,um povo miscigenado, misturado e “ajuntado”pelos índios + negros + brancos até a alma, um cabelo crespo, enrolado e cheio de cachos é claro que não vai ser aceito, não é mesmo? E quem é que tem esse cabelo senão o povo negro, ou afrodescendente? E quantas de nós (aqui incluo os homens) somos sinônimo de pessoas bem sucedidas, inteligentes, responsáveis, bonitas? A nós, negras e negros, ficam o extermínio, a repugnância, a feiura, a ignorância, a exclusão e a violência em todas as suas mais perniciosas faces e fases.
Minha filha, que tem pele clara e cabelos lisos (daqueles pesados que mal dá uma volta) aos 3,5 anos me disse com lágrimas nos olhos, ao ser perguntada por que estava “braba” aquela hora da manhã, que estava “muito braba porque ela se achava feia”. Imediatamente retruquei de onde ela tinha tirado aquilo. Ela respondeu e eu nunca mais esqueci: “por que eu não me pareço com a Barbie”. OI? Quase surto na hora e confesso, seu eu tivesse uma boneca daquela por perto eu jogava pela janela decepada, sem dó nem piedade. Agora imaginem o peso dessa afirmação para uma criança daquela idade. E lembrem, ela não tem pele escura. Agora já pensaram o que isso significa na vida e na construção da identidade de uma criança negra de pele escura?
Imaginem agora o que é um responsável ver sua cria constantemente preterida nos espaços sociais pela cor da pele ou pela textura do cabelo. Se essa/e responsável for uma pessoa empoderada, com visão crítica e fortalecida na sua condição de pessoa negra. Se essa/e compreender bem as regras dessa sociedade a ponto de também entender que há sim espaço para todas as pessoas e educar suas crias dentro de uma outra perspectiva de mundo, que seja includente e respeitoso, ela vai sofrer, mas vai também usar a rejeição e a violência como uma estratégia de luta e enfrentamento. Isso e fácil? Não, não é, nem nunca será. Porque a disputa por esse outro mundo é diária, é por hora, a cada minuto e é pesada. Mas é necessária e urgente. E esse cordão precisa engrossar mais. Por mim, por você, por todos nós, como diz o movimento feminista.
Então, por favor, compreendamos. Se essa/e responsável não tiver esse grau de autonomia e consciência crítica ela/e vai sim cometer os maiores absurdos na tentativa de minimizar os “problemas” que se apresentam. E, neste contexto, ter cabelos crespos, enrolados, embaraçados é sim uma tortura para os adultos e as crianças.
E como servimos o que está nesse caldeirão? Informação de qualidade e libertária, informaçãode qualidade e libertária e, informação de qualidade e libertária. Sem ela, sem a informação e a educação, como diria Boaventura de Souza Santos, “quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa”.
Mas não podemos apenas identificar ou levantar suspeitas para essas questões. O que podemos fazer, à vera, para enfrentar situações como essas onde o racismo provoca esse nível de violência. Há alguns anos eu li num artigo algo que me chamou a atenção. A autora perguntava como era a nossa casa. E faço o mesmo desafio para vocês, olhem em volta das suas casas. Quais as imagens que estão estampadas nos bibelôs, adereços, quadros, bonecas, enfeites em geral. Quais deles remetem a rostos de pessoas negras felizes, sorridentes, dançando? Porque o nosso referencial de beleza é o de características brancas. Então fica essa dica: enchamos nosso lares de rostos com a cara do nosso Brasil, das pessoas bonitas que transitam nas ruas. Para que nossas crianças, compreendam desde cedo que já diferentes tipos de beleza e que todas merecem respeito e cuidado. Só assim elas poderão ter alguma chance de melhorar esse “país abençoado por Deus e bonito por natureza”.
E é justamente que esse texto recebe o título de “Alisamento de cabelos infantis, a crença na negligência materna e o racismo velado”. Porque como bem trata o MILC, é muito mais fácil por o dedo em riste na cara dos responsáveis pelas loucuras e/ou violências em forma de negligência para com as crianças do que nesse conglomerado de empresas de produtos químicos, agências de publicidade, Estado e sociedade que cobra um modelo de beleza e perfeição que beira sim a loucura. Penso que está mais para atitudes de mães, pais e responsáveis desesperados em apresentar seus filhotes na “boa aparência” para que possam, quiçá, serem “aceitos” nessa ditadura da beleza branca do que outra coisa.
Ah! E quanto ao trabalho que dá ter cabelos cacheados, crespos e por aí vai que fortemente marcam as características negras, dá sim. Quem tiver um cacho na cabeça que me diga o contrário (meu cabelo e cacheado e já o tive num comprimento abaixo da cintura, sei muito bem o que é desembaraça-lo. E o da filhota, passávamos 15mim só para desembaraça-lo, com ele molhado após o banho e cheio de cremes…ao final, ela dormia…)
Fica outra dica. E quem achar que é muita viagem da minha cabeça, leia o artigo que fala da construção do racismo no imaginário infantil e publicado aqui no MILC. Chama-se Num Mundo de Diferenças (disponível aqui).
Imagem: print do filme Yellow Fever, disponível aqui.
(*) Rosely é mãe autônoma de uma filha linda que agora afirma que seu “coração e minha mente são negros, e não é porque tenho cabelo um pouco liso e uma pele um pouco clara que eu não sou negra. Sou negra e pronto!”; jornalista, educadora popular, militante no campo dos direitos humanos em especial nas áreas de comunicação com direito humano, crianças e adolescentes, e educação popular; especialista em Gestão Estratégica Pública para Governantes, pela Unicamp.
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