criança e mídia / destaque_home / 17 de agosto de 2016

Eu cedi, me julguem!

Texto especial para o Milc recebido por inbox com solicitação de proteção de identidade para não expor a criança*

Conseguimos segurar games e computadores até a alfabetização, como havíamos planejado. Os celulares não eram tão “smart” e os tablets não eram “brinquedos”. E foi fácil: antes dos anos 10 e até os seis anos a vida das crianças estava mais sujeita aos nossos controles… Sinto que agora é necessária muita resistência para, de fato, manter este controle mesmo na primeira idade.

Com sete ou oito anos, deixamos nossa filha começar a futucar os joguinhos em computadores de mesa e fez a primeira incursão num jogo “que todo mundo estava jogando” e topamos até pagar uma assinatura mensal, o clube penguim. Achamos que poderia ser instrutivo usar uma plataforma desenhada para criança para falar sobre segurança na internet: ela estava sempre acompanhada de toda as nossas supervisão e orientação necessárias ao convívio com outras “crianças” num ambiente virtual.

Logo depois, permitimos a instalação de joguinhos nos nossos celulares. Eu dizia que ela só teria o dela quando estivesse andando sozinha na rua, partindo do pressuposto que celular serve para se comunicar e, por isso, enquanto estivesse acompanhada por um adulto portando celular, não precisaria de um só para ela. Eu me sentia segura com a decisão e feliz por conseguir me manter firme no plano.

Ocorre que neste momento eu mesma não tinha estes aparelhos que permitem uma interação muito intensa de várias maneiras diferentes. Era o boom do whatsapp e as interações que eram feitas na porta da escola, na hora do cafezinho, por grupo e-mail e facebook ou telefone, passaram a ser feitas quase que exclusivamente pelos grupos de um app incompatível com o aparelho que eu tinha. Eu, adulta, me sentia excluída. Resisti alguns meses, busquei alternativas, aliadas, mas cedi: comprei um aparelho novo e percebi a facilitação nos contatos crescer assustadoramente.

Paralelamente a isso, as melhores amigas da minha filha começaram a usar também os recursos desta comunicação instantânea para marcar programas no final de semana, paralelamente ao grupo de mães. Ela estava resignada que, como filha de ativista, tão cedo não teria um aparelho para chamar de seu. Nem pedia.

E foi neste momento que comecei a ver no grupo das mães fotos dos encontros marcados pelas crianças de posse de sua autonomia. Encontros que não passavam pelos grupos onde eu estava. Muitas vezes pedi às mães mais próximas que me avisassem pelo grupo quando isso acontecesse: só que elas muitas vezes, como as crianças esqueciam da minha filha, esqueciam de mim… eu não queria ser excluída… eu não queria minha filha excluída… foi a primeira vez que balancei de uma decisão tomada com muita informação… eu cedi! Como eu já havia estado, a minha filha estava fora dos círculos. Eu conseguia saber exatamente o que significava saber-se excluída.

Eu cedi! Eu dei meu celular com um ano de uso à minha filha e comprei um novo para mim. E, vou te contar, não foi fácil abandonar as certezas, ideais e convicções. Não foi fácil enfrentar o medo do mau uso, da exposição, do risco. Não foi fácil admitir que eu não conseguiria sustentar a convicção ao preço da integração da minha filha. Não foi fácil me sentir tão vulnerável aos apelos externos, especialmente pensando como eu penso. Não foi fácil me sentir envergonhada por ceder.

Cedi porque sempre adorei as amigas que minha filha cultivara ao longo de seis anos de infância (amigas dos quatro aos dez anos de idade) e sempre desejei que ela as levasse vida afora. Cedi porque não consegui promover mudanças rápidas o suficiente num círculo de amigos grande o suficiente para ela não “precisar” de um aparelho para se sentir incluída. Cedi porque não consegui me empoderar para ver minha filha excluída. Cedi por achar meios alternativos de evitar a exclusão. Cedi porque se é neste mundo que a minha filha vive não posso controlar os seus desejos e necessidades de relacionamento social. Cedi porque não posso obrigar que minha filha seja a evidência comprovável das minhas hipóteses. Cedi porque não acho justo impor à minha filhas as minhas convicções. Me julguem!

*  *  *

Resolvemos que, se íamos dar um aparelho a ela, deveríamos aproveitar o tempo final da infância para “ensinar” alguns valores sobre a vivência num ambiente virtual, algo que já tínhamos começado a fazer desde o Club Penguim. E aqui compartilho com vocês algumas das lições que aprendemos juntas sobre o trânsito na rede: é como ensinar a andar na rua, a conviver com as pessoas… Não largamos a criança sozinha no parquinho, então não podemos deixá-las sozinhas na internet, mas sabemos que um dia ficarão e nosso papel é ensinar valores e princípios que possam ser apreendidos e utilizados ao longo da vida (inclusive da virtual). Deixo aqui cinco dicas (de uma lista sem fim) que considero mais importantes para outras mães que tenham permitido a incursão dos filhos na internet:

1. Privacidade Relativa: para começar deixamos claro que o direito dela à privacidade deve ser conquistado aos poucos. O e-mail usado para recuperação de senha é o nosso. Nós tínhamos a senha de bloqueio do aparelho e de todos os aplicativos instalados e ela sabia que olhávamos sempre que desejássemos. No início a supervisão era muito constante, quase diária, depois, ao percebermos que estava usando tudo sem grandes problemas, as nossas “visitas” ficaram mais espaçadas. E ela está conquistando ao longo dos dois anos este direito, mesmo sabendo que a qualquer tempo podemos requisitar vistas nas conversas privadas. Aos poucos as suas senhas passaram a ser secretas, porque todo adolescente tem direito a ter seus segredos.

2. Segurança Imperativa: os perfis dela são todos restritos e ela só poderia adicionar e se deixar ser seguida por pessoas conhecidas de fato. Orientamos a ela ter cuidado com quem segue para evitar ser impactada por imagens impróprias e publicidade, por exemplo. Acompanhamos semanalmente os seguidores e são todos conhecidos: amigas, colegas, mães de amigos e parentes. Segue perfis bem interessantes de acordo com os interesses próprios da idade.

3. Exposição Consciente: fizemos instruções claras sobre as informações que não deveriam postar – escola, endereço, nome completo, dados sobre os pais, etc – e sobre os cuidados que deveria ter com a sua própria imagem. Fizemos “palestras” sobre a importância de falar em chats e comentários com a mesma educação e cortesia que se falaria ao vivo, falamos de prints de fotos e comentários, mesmo em grupos e conversas privadas. Ela é ensinada a ter cuidado não apenas com a exposição do corpo, mas também das suas ideias.

4. Consentimento Obrigatório: ensinamos que as pessoas em suas fotos deveriam concordar com o post, que ela deveria sempre perguntar antes de postar e, caso alguma colega não gostasse da foto, que ela deveria tirar. E a empoderamos para pedir que as amigas excluam fotos com ela caso não se sinta confortável. Mesmo sendo a mãe dela, não posto fotos ou causos dela sem a devida autorização.

5. Comportamento Virtual Real: deixamos claro que o mundo virtual não é um mundo paralelo, é uma parte do nosso mundo real e que, como no mundo real, podemos ser educados, mas não podemos confiar e conversar com estranhos como conversamos com pessoas conhecidas. Ensinamos também que cada perfil tem uma pessoa por trás, mas que nem sempre esta pessoa é quem diz que é. Ensinamos que mesmo os amigos mais próximos não podem ter acesso à sua senha e ensinamos que ela não pode, sentindo-se protegida pela tela, escrever ou falar algo que não faria na cara da pessoa. Ensinamos que nada é apagado da internet e que ela deve pensar se gostaria que o professor, os pais, o futuro chefe ou os futuros filhos vissem determinado comportamento (dela e dos amigos).

Nós abrimos uma porta, mas por esta porta não passará toda a boiada. Usamos os últimos anos da infância da nossa filha para lhe ensinar a andar neste mundo virtual num período em que a necessidade de privacidade (de ter seus segredos) ainda não é tão grande e ela está permeável aos nossos ensinamentos para estabelecer um elo de confiança sobre as andanças na internet e os cuidados com as relações que estabelecemos.

*  *  *

Hoje perdi a ilusão do controle e da supervisão, mas mesmo assim me sinto feliz em ter feito esta transição: tenho uma grande confiança no aprendizado de minha filha. Sei que não vou consegui acompanhar minha filha 100% na medida que ela cresce. Da mesma maneira como os meus pais não conseguiram me acompanhar 100%, porque simplesmente existiam assuntos que eu não queria tratar com eles. É lógico que eu sonho em ter uma relação aberta e positiva com a minha filha: sempre quis estar perto, saber de tudo, ser ouvida nas suas tomadas de decisão, mas sou mãe há tempo suficiente para saber que essa é uma utopia (e a utopia nos move, mas não é realizada na plenitude). Sei haverão coisas que saberei e coisas que não saberei, haverão decisões que tomarão segundo meus conselhos, haverão decisões que tomarão à minha revelia. E isso é ótimo: ela está crescendo.

No que diz respeito à tecnologia, à internet, às redes sociais e aos aplicativos, sei que estarei sempre pisando nas pegadas deles, porque eles sempre estarão na minha frente. E olha que nem são crianças que foram imersas na tecnologia desde a mais tenra idade. Preciso admitir que sou uma imigrante digital e não falo fluentemente a língua que estes nativos digitais falam.

Enfim, não acho nada fácil formular certezas neste mundo em mutação e sigo sabendo que em algum momento não haverá a menor possibilidade de controle. Ensinar a andar na internet é como ensinar a andar na rua, ensinar a se relacionar virtualmente é como ensinar a se relacionar presencialmente: precisamos ter confiança nos princípios e nos valores que passamos e acreditar na necessidade de promovermos a capacidade crítica e reflexiva: não importa se é lápis, giz, tinta no papel, imagem na tv ou o app mais moderno, o que importa é a capacidade de leitura que temos e que estimulamos que tenham.

O que fazemos hoje em casa é ficar de olho e conversar muito… e escutar mais ainda.

(*) a mãe anônima mora num grande centro urbano, é comunicóloga, é ativista, blogueira e produtora de conteúdo para redes sociais. 


Tags:  #semtelas educação infância internet maternidade proteção à infância sem telas telas

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