maternidade / 19 de julho de 2017

Childfree  – Sobre como deixamos de simpatizar com os filhotes de nossa espécie

“Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Domingo, 10 da manhã. Eu, que gosto muito de estar naquele ambiente grandioso para simplesmente ouvir a música precisa do organista, chego mais cedo e sento num dos bancos da frente de olhos fechados. Apenas dois acordes depois alguém começa a falar. E mais alguém. E mais alguém. Como a missa ainda não começou, vamos colocar a conversa em dia? Quem não aprecia música também não repara que outros podem apreciar. Um jovem monge aparece para pedir silêncio aos adultos sem educação sem percepção musical.”

“Meu apartamento quarta feira a noite. O vizinho do andar de cima gosta de festas animadas com o som tão alto que incomoda os moradores dos outros prédios da rua. Precisamos chamar a polícia para que entenda que está extrapolando. Diante do policial na portaria do prédio, o vizinho tem um ataque de pelanca faz um escândalo desnecessário e se diz vítima de perseguição. Onde estará a mãe dele para exigir que se comporte?”

“Viagem de  ônibus noturno. Estou cansado. O bebê no colo da mulher ao meu lado dorme mas a senhora na fileira da frente não para de falar. Sua voz ecoa pelo corredor . Durante toda a noite eu tive que ouvir a história da vida de alguém que não me interessava e era uma história bem estranha. Se ao menos fosse uma criança eu poderia culpar a mãe”

 

Como bem disse Jerry Maguire :“We live in a cynical world”. Ao mesmo tempo em que repetimos como um mantra a importância do coletivo, de calçar os sapatos do outro, vivemos cada vez mais para dentro de nós mesmos. Damos atenção somente a nós mesmos e nossos grupos, cada vez menores e mais específicos. Existem os que gostam de bichos e os que os detestam, por exemplo. Assim como os que amam crianças e aqueles que as desprezam (!).

Ultimamente as crianças têm incomodado (?) bastante a ponto de ser debatido algo como movimento Childfree. A ideia original do movimento é a preservação o direito de não ter filhos. Pode parecer sem sentido , afinal ninguém deveria ser obrigado a fazer nada senão em virtude de lei, não é mesmo?  E não existe nenhuma lei que nos obrigue a procriar ( por enquanto). São pessoas que apenas querem viver suas vidas sem serem obrigadas a colocarem mais seres humanos no mundo.

Mas, não é bem assim. Todo mundo sabe que a pressão da sociedade sobre os indivíduos é algo bastante forte. Casais juntos há algum tempo e sem filhos, costumam ouvir gracinhas e cobranças. E não se iludam: casais com um filho só também são cobrados . Coitadinho do filho único, não tem ninguém pra brincar, é sozinho. A partir do segundo filho a coisa melhora mas, não ouse partir para o terceiro. Vão perguntar se você não tem tv em casa. Não dá pra deixar de mencionar também que ter filhos vai bem além da infância. Ter filhos é pacote completo. Eles só serão crianças por 12 anos e depois, bem, depois eles crescem.

Inegavelmente existe a pressão. Tanto para quem não tem filhos, quanto para quem os tem. Pressão é o nome do meio de nossa sociedade de consumo. Quando não temos nada melhor para dizer e já falamos sobre o tempo começamos a fazer perguntas sobre a vida dos nossos interlocutores para logo estabelecer julgamentos. Em nossos julgamentos nos incomodamos com tudo o que nos é estranho. E aí aparece a deturpação do movimento das pessoas sem crianças. Uma vez adultos e sem crianças nos incomodamos com as crianças. Que coisas chatas essas crianças, elas não se comportam como adultos, não é mesmo? Crianças são chatas e não nos lembramos mais disso porque nossa infância ficou para trás. Por isso preferimos restaurantes e estabelecimentos comerciais que não aceitem cachorros crianças. Não levamos em conta a nossa própria chatice. Acreditem, nenhum chato leva.

Mas, espere aí! Nós não éramos chatos. Nossos pais souberam como nos dar a devida educação. Só de olhar os adultos impunham respeito pois nós já sabíamos que receberíamos castigos corporais dolorosos se ousássemos pensar em desobedecer, falar mais alto, brincar fora de hora, responder aos mais velhos. Éramos crianças bem comportadas. Por que esses pais de hoje em dia simplesmente não castigam as crianças que falam alto no restaurante? Por que não as amordaçam?  E aquelas que rondam os dois anos e ainda tem dificuldade de verbalizar seus desejos e fazem birras por tudo e por nada? Por que os pais não as trancam em casa até que saibam como se comportar em sociedade? Nós apanhamos e não morremos. Nossos pais nos castigavam corporalmente por que nos amavam.  

Nós não éramos chatos. Nem somos chatos agora. Somos pessoas maravilhosas que não deixam o colega ao lado escutar a música dentro da igreja, atrapalhamos nossos vizinhos com barulho na madrugada, falamos sem parar dentro do ônibus, levantamos para tirar fotos nos eventos atrapalhando os demais que querem apenas assistir, lotamos bares de rua e não deixamos os moradores dos prédios do entorno dormir,  falamos alto e fazemos spoiler dos filmes que já assistimos dentro do cinema.  Somos uns queridos. Ainda bem que já passamos da infância. Crianças são chatas demais.

 

* Vanessa é co-fundadora do Milc, tem apenas um filho ( único, coitado, sem nenhuma outra criança dentro de casa).

** Imagem: www.thelocal.de Bar na Alemanha proíbe entrada de cães e crianças.


Tags:  child-free childfree maternidade e filhos proteção às crianças

Bookmark and Share




Previous Post
Milc na escola - Alimentação, confusão nutricional, falta de tempo e informação
Next Post
Ensinemos as crianças a serem feministas



Movimento Infância Livre de Consumismo




You might also like






More Story
Milc na escola - Alimentação, confusão nutricional, falta de tempo e informação
Texto especial para o Milc de Vanessa Anacleto* Em maio estive em uma escola de educação básica da rede federal.  Junto...