outros / 14 de agosto de 2013

Por que vi Carrossel com minha filha de 7 anos

Texto de Sylvia Xavier*

mae_filhaTV

Ela insistiu muito, queria participar das conversas dos amigos da classe, pois todo mundo sabia as músicas e sabia tudo sobre os personagens. OK, a primeira resposta pronta de pais descolados é “Você não é todo mundo!”. Essa resposta finda muita discussão, inclusive com os adolescentes, porém não resolve o problema. Tive que quebrar a cabeça diante do problema, nunca ela insistira tanto. Diante das súplicas (já não eram mais pedidos!) nos programamos para ver um episódio. Irritante, cheio de clichês, estereótipos, assassinatos contínuos da língua portuguesa, preconceitos, incitação ao consumismo, mas respeitei a vontade dela.

Vi o episódio e – o que é pior – passamos a acompanhar eventualmente a novela. Deixava que passasse alguma sequência e comentava com ela. Mas, filha, você conhece alguma menina que fica o tempo todo falando que tudo é tão romântico? Ou, ainda, se já tinha visto uma Maria Joaquina com todos os estereótipos de rica preconceituosa. Disse a minha filha que a preferia, porque num dia ela era fada, no outro uma super-cientista, no outro uma mocinha que já fazia uma porção de coisas sozinhas. E aquelas personagens eram sempre a mesma coisa todos os dias. Quem era medroso, nunca tinha coragem. O guloso nunca se esquecia da comida para ir brincar. E o sem noção nunca falava nada consistente. Que vida mais chata nunca poder mudar, eu dizia.

Em outro momento conversava com ela sobre a verossimilhança das cenas (do tipo, a professora discutir seus problemas de namoro com os alunos), questionava sobre os estereótipos (aluna gorda, aluno burro, professora sonsa, faxineira tonta com sotaque “pseudo nordestino” televisivo etc.). Sempre em tom de brincadeira, evidenciava o fato de quase nunca ter aula naquela escola, a maior parte da aula era dedicada a resolver chiliques ou dramas da própria professora. Perguntei a ela que tipo de pai ou mãe deixa seu filho negro fazer o papel de uma pessoa burra e que durante meses é motivo de riso. Ela já ouviu falar em escravidão e que no Brasil existe muito preconceito. Minha filha é loirinha e um dia veio aos prantos para casa dizendo que os meninos da escola a chamaram de loira burra. Perguntei se ela achava que eu permitiria que ela fizesse algum papel na televisão em que fosse constantemente achincalhada e o espanto foi grande: “Óbvio que não, né Mamãe?”

Além disso, propunha à minha filha o desafio de contar quantos produtos eram anunciados em cada segmento e quais eram destinados a meninos e a meninas, evidenciando sexismo e todas as implicações decorrentes. Não acompanhamos com tanta frequência, às vezes a convencia que uma leitura antes de dormir era mais legal, ou um desafio de jogo de cartas. Dizer que não a deixaria ver TV e abandoná-la com uma pilha de DVDs acho que é um tipo de trapaça. Dizer eu não tenho tempo, arrumei tempo, trabalho menos, compro menos sapatos e muitas vezes até deixo de ver aquele espetáculo que vai ficar pouco tempo em cartaz. Mudei bastante meus hábitos de consumo, antes de exigir que a TV o faça. E nem mesmo espero que a TV eduque minha filha, isso é papel meu, da escola e dos grupos sociais que convivemos. Creio que afastar dos programas de televisão não resolve muito, eles estão aí e entranham na alma das nossas crianças. Prefiro enfrentá-los. São tão toscos que podem se transformar em matéria-prima do pensamento crítico, comparando-os com situações representadas em (bons!) livrinhos de literatura infantil, situações vividas ou notícias.

Acho que devo prestar atenção quando algo é tão importante, na grandeza da escala de que tem sete anos. As crianças crescem e a contínua recusa adulta de entrar em contato com os apelos infantis muitas vezes faz com que elas busquem outros referenciais, pois se cansam de solicitar que o adulto as entenda. Ah! E é claro! TV na sala, duas horas por dia, no máximo. E nada de TV no quarto. Nem no dela, nem no meu.

O único elogio à novela Carrossel era trilha sonora que resgatou boas músicas brasileiras. E Chiquititas? O que será que aconteceu? Diálogos mais pobres ainda. E será que demitiram a equipe responsável pela trilha sonora no SBT?

*Sylvia é mãe solteira de uma menina de sete anos. Educadora há 29 anos, é autora de livros didáticos de Ensino Fundamental (Finalista do Prêmio Jabuti 2000 e 2001), professora de História e colaboradora da Fundação Vanzolini e do INEP.



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Mariana Sá






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