criança e mídia / legislação / 23 de julho de 2014

Nada de novo no discurso da mais nova representante do mercado

Texto especial para o Milc de Mariana Sá *

Li com curiosidade a entrevista de Mônica de Sousa publicada pelo Jornal O Globo no domingo, 20/7. Monica é a filha de Mauricio de Sousa que quando menina o inspirou na criação da personagem título dos quadrinhos mais queridos do Brasil. A personagem extrapolou as margens das revistinhas e chegou a desenhos animados, teatro, parques de diversão e embalagens mais diversas, inclusive de produtos alimentícios. É a mais nova voz defendendo o status quo e os interesses de um rico mercado dentro do debate sobre a regulação da publicidade infantil – uma boa estratégia: Mônica chega com a força do afeto que nutrimos desde criança pela personagem de mesmo nome. 

Alvo de uma simpatia natural que nutrimos pela Turma da Mônica durante toda a infância, é difícil questionar a força que traz em sua voz e mais difícil ainda admitir que a pessoa que inspirou a personagem defenda tais pontos de vista com argumentos que considero desgastados e superados.

O fim dos personagens

Em sua entrevista, Mônica afirma que a resolução 163 do Conanda quer sumir com os personagens e esta é uma das maiores falácias que já ouvi sobre a medida. Afinal, os personagens continuarão a existir dentro das produções artísticas, onde é o lugar deles! Ninguém defende que MS Produções deixe de vender revistinhas e DVDs ou circular com suas peças de teatro pelo Brasil. Os personagens vão continuar divertindo as crianças e passando os valores (seja lá quais sejam) que Mônica defende na entrevista.

Trabalho em comum e denominador comum

Sou capaz de apostar que todos que trabalham com direitos da infância têm real  interesse na aproximação do maior defensor do status quo para um debate sincero (eu tenho!). Porém, durante estes dois anos em que acompanho o debate acerca da publicidade infantil, ainda não vi seu pai ou ela mesma sentados numa mesa de debate democrática, de coração aberto, ouvindo os argumentos dos pais e das instituições que demandam mais regulação.

Infelizmente, o que foi noticiado sobre a participação deles no debate foram os encontros do empresário com políticos, a tentativa de polarização do debate, um até certo terrorismo em relação aos planos do conglomerado e uma ameaça explicita a uma mãe que criticou suas condutas empresariais, sempre embasado em seu direito, é claro, mas ver agora esta súbita abertura ao debate é de difícil digestão.

Uma sociedade com problema emocional

Mônica sabe que a sociedade está consumindo mais – isso é bom para quem vende – e sabe que a doença do século é a obesidade. O que ela parece não saber ou se esforça para parecer ignorar é que os queridos personagens emprestam sua força e sua voz a produtos que figuram nas listas dos piores produtos alimentícios do mundo: empanados de frango e macarrão instantâneo para ficar com dois exemplos. Como a educação de casa terá força diante da simpatia de Mônica, Cebolinha e Cascão apelando para hábitos não saudáveis de alimentação?

Crianças alienadas

Alega-se que proibir que os personagens estampem produtos que fazem mal à saúde significa alienar a criança. Eu acho o contrário: é extremamente alienante uma criança achar que foi o Cebolinha quem fez uma massa instantânea ou que a Mônica plantou macieiras. Ora, a publicidade dirigida à criança e o licenciamento descontrolado de produtos péssimos não são parte da solução: são parte do problema.

Fim de todos os problemas 

É simplista imaginar que pais e entidades que buscam a proteção e garantia integrais dos direitos acreditam que apenas a regulação correta da publicidade seja a solução de todos os problemas. Todos os que lutam pelo fim da publicidade infantil sabem que o respeito e a efetivação da regulação não extinguirá o consumismo, mas é o primeiro passo. Se uma sociedade quer ver seu tecido social  restaurado, precisa priorizar a infância, precisa começar cuidando bem das crianças que estão chegando e promovendo qualidade de vida dentro das famílias (em suas formas mais diversas, que fique claro! e não apenas as quem tenham pai e mãe como a entrevistada valoriza), que é o núcleo fundamental da comunidade.

A publicidade como inocente

A entrevistada  gasta muita energia tentando salvar a publicidade dirigida à criança, mas deixa muitas brechas na sua argumentação. Deixa clara a ajuda que o marketing dá no aprofundamento dos nossos problemas sociais (e emocionais). O conglomerado não licencia refrigerante e bala, mas licencia macarrão instantâneo…  O que dizer?

E ao admitir que o licenciamento empresta a força do personagem para ajudar a mãe a fazer a criança comer (frutas), admite também que a existência de um personagem numa embalagem incentiva a ingestão daqueles alimentos. É estranho, hein?  Em uma resposta ela diz que os personagens ajudam a comer fruta e em outra não soma o marketing a sua lista de fatores que levam a obesidade.

Ora! Seus personagens estampam péssimos produtos alimentícios! É isso que pais e entidades não acham nada razoável!

É lamentável ler as respostas sobre ética e sobre os critérios de escolha dos produtos a serem licenciados: como é triste ver a representante dos anunciantes do coração dos nossos filhos dizer que “Ele (Mauricio de Sousa) não está fazendo com que (a criança) consuma, mas com que escolha aquele produto entre outros (que não trazem o personagem da embalagem).” Qual a diferença mesmo?

Já que o critério é “só licencio o que ofereço aos meus filhos”, pensamos que talvez a equipe que seleciona os produtos que levarão a assinatura e a força dos personagens devesse estudar e se aprofundar um pouco mais sobre nutrição para fazer melhores escolhas sobre o que dão para os filhos comerem.

Informação como estratégia contra a obesidade

Se a informação de boa qualidade começa a fazer a efeito na redução da obesidade nas classes A e B, pergunto: existem iniciativas do conglomerado para contribuir com a difusão de boas informações? Existe informação de boa qualidade sobre nutrição nas revistinhas? Existe informação de boa qualidade sobre nutrição nas embalagens dos produtos que licenciam? O conglomerado exige dos licenciados que estampem alertas nos alimentos sobre os riscos à saúde? Exige que avisem que são ricos em sódio, açúcar e gordura?

Crianças manipuladoras e adultos infantilizados

No final da entrevista, a simpática musa inspiradora da líder dos quadrinhos mais famosos do Brasil mostra desconhecimento sobre quem realmente são as crianças, descrevendo-os como seres manipuladores com total domínio das suas vontades. Ignorando – ou fingindo que ignora – a maneira como estas vontades surgem na psiquê das crianças. E coloca mais uma vez a culpa nos pais, mesmo admitindo que o bombardeio mercadológico contribua para o problema.

Leia a entrevista aqui. Imagem da web.

(*) Mariana é mãe de dois, publicitária e mestre em políticas públicas. É autora do blog materno viciados em colo e é cofundadora do Milc. Mariana faz regulação de publicidade em casa desde que a mais velha nasceu e acredita que um país sério deve priorizar a infância, o que – entre outras coisas – significa disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças. viciadosemcolo.com


Tags:  infância proteção à infância regulamentação resolução 163

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Mariana Sá




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