destaque_home / publicidade de alimentos / 26 de setembro de 2014

“Toma pelo menos a coca”

Texto publicado anteriormente na coluna Consumo&Infância do Mamatraca, de Mariana Sá*

Era uma fila de restaurante por quilo como outro qualquer. Eu e mais três amigas conversávamos animadamente e na nossa frente uma mulher e uma menininha faziam seus pratos. Saudosa da minha própria menininha pus-me a observar a interação das duas: 

– Um bifinho, por favor!

E a mulher enche uma colherona de mini-empanados de frango (português para nuget) e tasca no prato da menina. “Oxe! A menina chamou ‘isso’ de bifinho, lá de onde eu venho bife é outra coisa, eu hein!”. Pensei em como era “deseducativo” chamar um troço que nem alimento é com o nome de uma comida que – de fato – existe.

Observei os dois pratos: o da mulher tinha folhas verdes variadas e arroz integral com cenouras e ervilhas. Um bife de verdade acabara de pousar no prato naquele mesmo momento. A seguir, uma porção de brócolis e couve-flor cozidos no vapor recém chegados ao prato era regados com azeite de oliva (extra virgem, dizia o rótulo!).

– Também quero couve-flor! – ouvi a voz da menina vindo mais da frente e fiquei surpresa com uma porção de batata sorriso sendo esparramadas num prato com arroz branco e empanado de frango.

– Um pouquinho de feijão, pelo menos… – já dava para ouvir uma pontinha de sentimento na voz da menina. Mas pode ter sido minha imaginação, porque a minha vontade era de chorar mesmo.

Depois de uma porção generosa de batata frita servida no lugar do feijão a dupla se dirigiu rapidamente para a balança, me deixando para trás dividida entre a vontade de mandar a mulher “pensar no que ela acabara de fazer” ou preparar um prato de comida de verdade para a menininha.

Mas decidi cuidar da minha própria vida e servir a mim mesma de couve-flor, bife e um pouquinho de feijão em homenagem à menina. Fiquei fazendo a contabilidade dos carboidratos simples e das gorduras da pior qualidade: dois tipos de batata, ambos fritos, e o empanado faziam o arroz mesmo branco morrer de vergonha.

Avistei as duas numa mesa bem no caminho para a minha e pude ver a menina com o garfo a sequestrar uma couve-flor do prato da mulher. Andando lentamente consegui ouvir o que se seguiu da tentativa de rapto.

– Come a sua comida, amor! – pede a mulher com uma doçura suficiente para saber que ali havia amor.

– Mas eu não queria batatinha… – responde cruzando os braços.

– Seu prato tá cheio de comidinha de criança, meu amor, come…

– Ah, vovó, eu não queria essa comidinha, não… – quase chorando e partindo o meu coração.

– Tá bom, toma pelo menos a coca. – resigna-se a avó com a voz entristecida.

 

***

Pela primeira vez na história da humanidade, as crianças com dentição completa comem algo diferente dos adultos. Agora temos linhas enormes de produtos “marketados” para criança. São produtos elaborados especialmente para encantar: personagens nas embalagens, formatos diferentes, desenhos, brindes e toda uma sofisticada linguagem verbal e não verbal especialmente criada para fisgar crianças e adultos na tese de que produtos “marketados” para criança são mais adequados para crianças do que os produtos regulares, ou que a comida de verdade.

Tenho diversas hipóteses para tentar alcançar o raciocínio de uma adulta que decide não escutar uma criança, ignorar a sua vontade e oferecer um produto de pior qualidade do o desejado: ora, a menina queria bife, feijão e couve-flor e ganhou empanado e dois tipos de batatas fritas:
1. A avó gosta destas tranqueiras e não pode comer por causa do colesterol e decide que a neta deve comer enquanto pode?
2. A avó discorda da rotina alimentar saudável “imposta” pela mãe e pelo pai e decide ser importante “dar uma folga” a tanta saúde a mostrar o “labo bom” da comida?
3. A avó foi levada a acreditar que existe um tipo de comida especial e boa para criança?

Eu escolhi analisar o contexto e olhar para esta adulta com mais condescendência. Prefiro acreditar que ela está imersa num sistema que nos cega, que anula a boa informação que temos (e ela tem, vide a escolha das comidas no seu próprio prato) e o bom-senso, nos fazendo chafurdar na falta de reflexão e na repetição de pensamento que temos apenas por hábito.

Acredito comprou a tese defendida pelo marketing dos produtos feitos para crianças de que a comida que ela colocou no prato da neta deveria ser diferente da comida para adultos que ela colocou no próprio prato. Ela foi levada a acreditar que faria a sua neta feliz em poder comer coisas feitas especialmente para criança. Ela foi levada a acreditar que não havia mal maior em servir a uma criança aquele produtos. Ela fez uma conta e decidiu comprar a ilusão de estar fazendo a sua neta feliz.

***

– Mas eu não tomo coca, vovó!

***

A cena descrita acima é real. Aconteceu em meados de 2013, no restaurante que fica embaixo da marquise do Parque do Ibirapuera: eu tenho testemunhas. As companheiras do Milc que almoçaram comigo no intervalo de uma reunião sobre infância e consumo da Rebrinc.

 

Nota da editora: o Mamatraca tem diveros textos sobre Consumo&Infância. Confira: http://mamatraca.com.br/?theme=23 

(*) Mariana é mãe de dois, publicitária e mestre em políticas públicas. É autora do blog materno viciados em colo e é cofundadora do Milc. Mariana faz regulação de publicidade em casa desde que a mais velha nasceu e acredita que um país sério deve priorizar a infância, o que – entre outras coisas – significa disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças. viciadosemcolo.com


Tags:  alimentação infantil alimentação saudável alimento infantil

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Mariana Sá




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