maternidade / publicidade infantil / 8 de dezembro de 2014

O consumismo infantil e a culpa

Texto especial para o Milc de Letícia Penteado*

É triste ver como funciona a (falta de) lógica por detrás da defesa da publicidade dirigida ao público infantil.

Como eu já disse antes, não faz o menor sentido ficar bradando que a publicidade tem que ser dirigida às crianças porque os produtos são para elas e, ao mesmo tempo, que cabe a pais e mães “impor limites” ao consumo delas. Ora, se é esse o nosso papel, então por que não vir falar conosco? Por que ir falar direto com as crianças? Me admira a cara de pau de fazer de conta que elas não estão sendo usadas como ferramenta de pressão. De responder a críticas com um simplista “basta dizer não”.

Ser mãe e pai na nossa sociedade é, muitas vezes, viver correndo atrás do próprio rabo. Trabalhar para sustentar família, cuidar da casa para manter um ambiente (minimamente!) saudável para todes e, no tempo que sobra depois disso, tentar dar às crianças todo amor, carinho e atenção que elas precisam de nós enquanto, exaustes e ansioses por um momento a sós, esperamos que elas durmam.

É fácil se perder nessa rotina tresloucada. Esquecer o que realmente importa e tratar os meios como fins em si mesmos.

Quem nunca esperou de si, como mãe ou pai, mais do que foi capaz de dar? Quem nunca teve que lidar com seus próprios limites ou, mais frustrantemente, com limites impostos ou potencializados pelas suas circunstâncias pessoais? Quem nunca errou?
E quem nunca, por decorrência disso, sentiu culpa?

A culpa, pelo menos em alguma medida, me parece ser uma constante da mater/paternidade. E a culpa não é um sentimento cômodo, nem feliz.

Podemos desconstruir essa culpa. Considerar o que está além do nosso controle e nos perdoar; considerar o que podemos mudar e efetivamente fazer diferente; considerar o que, na verdade, é uma imposição cultural opressiva (“mulher TEM QUE dar conta de tudo ao mesmo tempo”, por exemplo) e lutar contra isso.

Mas essa desconstrução exige reflexão e refletir toma tempo. Tempo que muitas vezes não se tem ou não se crê ter, porque se está muito atarefade correndo, como eu disse, atrás do próprio rabo, sem poder parar para respirar, constantemente bombardeade por mensagens diversas que, no fundo, têm sempre um mesmo significado: continue correndo. Correndo. Consumindo.

“Você vai se sentir melhor se comer isto”, “vão gostar mais de você se vestir aquilo”, “você será finalmente feliz se tiver aquilo outro”.

Você consome mais, você precisa de mais dinheiro, você trabalha mais, você se sente pior, você consome mais. O consumo é a anfetamina que o capitalismo usa para manter as pessoas correndo em suas rodinhas, ocupadas demais para roerem suas gaiolas. Ocupadas demais para se lembrarem de seus porquês.

E fica a criança, ali, parada na frente da TV, esperando alguma pessoa que ela ama e que a ama, mas está presa na rodinha, ter tempo para ela.

Ela vê passar o anúncio de um brinquedo, vê ali sorrisos, quem sabe um pai ou mãe brincando junto. Felicidade. Presença. Algo ali é o que ela precisa. Algo ali faz falta para ela. Deve ser… o brinquedo, claro.

E então ela vai e pede o brinquedo. A pessoa adulta ouve nas entrelinhas daquele pedido: “algo me falta!”, e já sente cutucar a lança venenosa da culpa. Algo falta para a criança que ela ama tanto. O que falta? Será mesmo que é o brinquedo?

Pensar nisso dói demais. Talvez ainda mais se a pessoa já foi um dia uma criança para quem algo faltou. E do mal-estar surge, como sempre, a ânsia pelo alívio, pela droga, pelo consumo. Não há tempo para pensar. Corra! Continue correndo! Continue comprando!

E pronto. Toma aqui o seu brinquedo, criança, agora você está feliz. Eu não preciso segurar a sua mão e te ouvir, não preciso repensar as minhas atitudes, não preciso rever a forma como me relaciono com você, não preciso reavaliar a minha vida, não preciso parar de correr. Pegue o seu presente e fique feliz. Não te falta nada.

A criança olha para o que ganhou, o coração em saltos com aquela “prova de amor”, aquele luxo, e brinca feliz… até o objeto perder a novidade. E daí ela olha em volta e se vê sozinha de novo. Chega o frio devorador do vazio. Ela pega o brinquedo, tentando se aquecer de volta com aquela euforia de antes, mas ela já passou. Não está mais lá. Porque ela nunca esteve lá. Mas isso ninguém conta para a gente nos comerciais coloridos e cheios de dentes.

E agora? A resposta é rápida, especialmente para quem aprende pelo exemplo e aprende rápido. Correr. Consumir. Pedir outro brinquedo, para de novo ter aquela prova de amor, aquela atenção em forma de coisa. Aquele calor, ainda que efêmero. Dura pouco, mas é tão bom!

Se uma pessoa adulta não é capaz de resistir ao canto da sereia consumista, como se pode culpar uma criança por isso? Então, não contentes em manipulá-las, vamos agora culpá-las por não resistirem à nossa manipulação, chamando-as de tiranas, aproveitadoras, manipuladoras, elas próprias? E tudo isso enquanto ganhamos dinheiro explorando-as, instrumentalizando-as, usando-as para forçar as pessoas adultas em sua vida a consumirem? É de fazer corar essa falta de escrúpulos e é ainda mais repugnante quando se pretende fingir ser esse um discurso isento de interesses pessoais em lucros milionários.

Cabe-nos, claro, como mães e pais, tentar parar e refletir. É verdade. Cabe-nos lutar contra o impulso de continuar correndo, sem olhar para os lados, sem ver ou ouvir nada que não sejam as nossas patinhas batendo no metal e a roda girando e girando. Isso pode e deve ser problematizado e é, a meu ver, uma problematização muito bem-vinda. Mas não vamos usá-la para culpabilizar quem está sendo explorade e exculpar quem está explorando. Não vamos nos distrair do fato de que há alguém que intencionalmente se alimenta de tudo isso. Que há alguém que torpe e calculadamente procura esse impulso, o estimula e daí se aproveita dele.

Então se um traficante de drogas se infiltra numa reunião do Narcóticos Anônimos procurando clientes para aliciar, ele está só “fazendo uso de uma oportunidade de mercado”? “Fazendo o seu trabalho”? Não seria essa atitude absolutamente repugnante e moralmente reprovável? E por que, quando o vício é outro, ela é admissível?

A culpa pelo consumismo infantil não é des pais e menos ainda das crianças. A culpa é de quem lucra em cima da culpa. A culpa é de quem se alimenta do vazio dentro das pessoas, sejam elas de qualquer idade. A culpa é de quem faz da dor humana um bom negócio.

Imagem do Mamatraca/Uol

(*) Letícia é mulher, mãe, anarquista e feminista. Adora gatos e odeio beijos no nariz. Autora do Anarca é a mãe!


Tags:  consumismo consumismo infantil consumo culpa maternidade paternidade sociedade de consumo

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Mariana Sá




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