destaque_home / maternidade / 24 de julho de 2015

As feras de Bela: uma ativista anônima incomoda muita gente. Uma ativista celebridade incomoda muito mais.

Texto especial para o Milc de Mariana Sá, com grande contribuição de Claudia Visoni e Debora Regina Diniz em troca de ideias sobre a recente polêmica da cúrcuma que Bela Gil usa para escovar seus dentes*

Finalmente temos uma celebridade que questiona a indústria. São poucos os artistas dispostos a comprar briga com potenciais financiadores dos seus projetos ou pagadores de seus cachês. Não é difícil de imaginar os motivos que levam até as personalidades mais politizadas a deixarem as indústrias de fora quando expõem das suas opiniões sobre fenômenos sociais contemporâneos.

Uma cantora pode até mostrar os peitos numa propaganda de incentivo à amamentação, mas dificilmente vai entrar numa treta com a indústria e denunciar as suas práticas antiéticas para vender substitutos dos leite materno. Um ator pode até produzir um filme sobre a importância do brincar, mas dificilmente vai entrar numa brincadeira de cabo de guerra com a indústria farmacêutica ou com as corporações representantes dos profissionais de saúde.

Só que agora temos Bela Gil! Ela está numa importante emissora e nas redes sociais detonando os processos produtivos da indústria de alimentos (e mais recentemente de cosméticos) e apresentando boas alternativas para substituir produtos. Em geral ela propõe soluções sem marca, de preço acessível e de fácil acesso. Tanto as denúncias, quanto as alternativas trazem como novidade em si apenas o fato de ter uma celebridade como porta-voz.

Suas aparições causam amor e ódio. Amor nos ativistas de várias áreas (inclusive em nós, ativistas por uma infância livre de consumismo) e ódio em pessoas que não admitem ter suas convicções e hábitos questionados. As caixas de comentários – como já se era de esperar – estão recheada de ofensas, ironias e ódio. Tudo destemperado com o tom de violência que tomou conta dos debates nestes anos 10.

As polêmicas envolvendo as ideias de Bela Gil nas redes sociais nos trazem algumas sinalizações importantes sobre o caminho que estamos tomando como sociedade.

  1. Zona de conforto, eu quero uma pra viver – Muitas pessoas não gostam de ler nada que as tire da zona de conforto. E como os ativistas expõem que o estilo de vida  preguiçoso depende da exploração da natureza e de outras pessoas, flechada neles! Então, se quiser matar alguém de ódio basta contar como consegue cuidar do filho sem recorrer à TV, preparar em casa o lanche saudável para colocar na lancheira dele, além de plantar e cozinhar a própria comida, fazer trabalho voluntário e – depois disso tudo – preparar o próprio cosmético. Do lado de lá, vai ter sempre um monte de desculpas: falta tempo, falta dinheiro, a hérnia na coluna. Ninguém diz que não limpa o banheiro porque tem preguiça e nojo, que acha chato descascar e picar fruta então abre o suco de caixinha. Ninguém diz que falta tempo para assistir série de TV ou falta dinheiro para o smartphone. Mas para cozinhar falta tempo. E para comprar orgânico falta dinheiro.São sempre umas explicações sofisticadas e a busca de pêlo em ovo para desqualificar quem faz essas coisas. E dá-lhe discurso raivoso para desconstruir qualquer pensamento “alternativo”.

  1. Matem o mensageiro – Ao que parece as pessoas não querem assumir que não estão a fim de pagar o preço do comportamento mais ético, daí desejam a morte do mensageiro. Não gostam que seus hábitos sejam revelados como prejudiciais ao planeta, à saúde pública ou à economia. Quando descobrem que um ato a que foram habituadas pode estar causando sofrimento a alguém ou colocando em risco a própria saúde, a primeira providência é matar o mensageiro. Afinal é mais fácil desqualificar quem nos dá a notícia do que trabalhar para mudar o próprio hábito ou que lutar para que a situação se extinga. Mais fácil chamar de maluca quem nos diz que ainda existe escravidão no mundo do que buscar produtos que não tenham sido produzidos por trabalhadores em situação análoga a escravidão.

  1. Autonomia dá muito trabalho – Está todo mundo tão ocupado trabalhando para pagar por produtos que nos envenenam que ninguém consegue parar para fazer o próprio desodorante, mesmo que o da prateleira esteja dando coceira e nos mate de medo de um câncer. E é isso que Bela fala: quanto mais prático, mais perigoso para o planeta e para quem usa. Além disso, fica claro porque a cúrcuma que serve aos dentes da Bela Gil não serviria para a maioria das pessoas: ela não consome açúcar refinado e outras porcarias. Não é só a cúrcuma, é a alimentação!!!

  1. Cientistas, indústria e mídia, a nova trindade divina (atualizado) – O que eles dizem não pode ser questionado por qualquer um. E essas três entidades estão intimamente ligadas, uma apoiada na outra. Assim, só se pode questionar aquilo que o médico diz se médico for, colocando a comunidade médica numa posição em que não pode ser desafiada. Só que existem pesquisas “científicas” feitas por demanda da indústria para atender interesses comerciais. Sem falar nas pesquisas que são publicadas pelo mundo em revistas científicas pouco sérias do tipo “pagou-publicou”. E essas mesmas pesquisas cheias de viés são divulgadas pela mídia também pelo interesse em novas verbas publicitárias. Afinal, quem vai pagar por pesquisas que investigam soluções simples que não possam ser licenciadas, embaladas e colocadas numa prateleira? Claro que existem muitos trabalhos sérios, que são as metanálises e os estudos randomizados. Esses, muito mais difíceis de burlar. Não estamos questionando o valor do método científico, mas observamos que o conflito de interesses está forte na medicina. Aquele monte de presentes, regalias e viagens bancados pela indústria farmacêutica para incentivar o médico a receitar seus produtos pode influenciar a decisão do profissional na hora de prescrever um medicamento ou tratamento. E tem mais: as pessoas querem certezas e os questionamentos aos profissionais da saúde causam muita angústia. Tendo os médicos (e os dentistas e nutricionistas um pouco também) virado os sacerdotes e deuses do nosso mundo, o que eles dizem vira lei. Cabe às “pessoas comuns” confiarem cegamente. Só que nem sempre esses profissionais têm interesse ou conhecimento sobre modos de vida saudáveis. Por outro lado, existe muito ativista autodidata-pesquisador-CDF por aí (e também tem maluco e picareta, claro). O que estamos dizendo é para não decidir em que argumento confiar só com base no diploma que está na parede do cidadão. E que gostaríamos de ver mais médicos e médicas ativistas brigando com a gente para libertar o setor de saúde das amarras mercadológicas.

O objetivo desse texto não é convencer todo mundo a gostar de qualquer naturebice, concordar com todo tipo de denúncia nem aderir a todas as alternativas apresentadas, abrindo mão do que acredita. Discordamos é da perseguição aos ativistas ou a mania de desqualificar as personalidades que questionam publicamente o sistemão.

Vamos ver em quanto tempo nós vamos deixar de resistir às perguntas e aproveitar para experimentar as respostas, escolhendo as que fazem sentido com nossas rotinas, ideais e modos de vida.

Montagem de imagens do Instagram de Bela Gil.

(*) Claudia Visoni é paulistana, jornalista, ambientalista, mãe, microagricultora, jogadora de basquete, cozinheira e jardineira familiar. Publica o blog www.conectar.com.br/blog

Debora Regina Magalhães Diniz é mãe de três, cofundadora do Milc, cursou Letras e Semiótica. É doula e educadora perinatal há 10 anos. Atualmente vive no Vale do Paraíba e é uma das coordenadoras da Roda Bebedubem. É ativista e implicante com a sociedade atual desde sempre. Co-fundadora do Milc e membro da Rebrinc.

Mariana Sá é mãe de dois, publicitária e mestre em políticas públicas. É cofundadora do Milc e membro da Rebrinc. Mariana faz regulação de publicidade em casa desde que a mais velha nasceu e acredita que um país sério deve priorizar a infância, o que – entre outras coisas – significa disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças.

 


Tags:  ativismo redes sociais sociedade contemporânea sociedade de consumo

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Mariana Sá




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