destaque_home / publicidade de alimentos / 14 de maio de 2019

Escândalo do leite com chocolate

Trecho do livro Uma verdade indigesta, de Marion Nestle liberado pelo editor

Em dezembro de 2015, a Universidade de Maryland divulgou o seguinte comunicado à imprensa: “o Fifth Quarter Fresh, novo leite com chocolate com alto teor de proteína, ajudou os jogadores de futebol americano do ensino médio a, mesmo depois de sofrer concussões, melhorarem suas funções cognitivas e motoras ao longo de uma temporada”. O estudo foi conduzido pelo professor de cinesiologia Jae Kun Shim, que acompanhou 474 atletas da modalidade de várias escolas do oeste de Maryland durante a temporada do outono de 2014. O comunicado citou as palavras do professor Shim: “no geral, independentemente de concussões, os jogadores de futebol americano do ensino médio que beberam Fifth Quarter Fresh durante a temporada apresentaram resultados positivos. […] Especificamente, nas áreas de memória verbal e visual”.[1]

Essa era uma notícia impressionante. Atualmente, nos esportes, as concussões são motivo de grande preocupação. Cada vez mais têm sido reconhecidas como a causa de déficits cognitivos de curto prazo e de danos cerebrais permanentes. Com base nessas evidências, pediatras chegaram a pedir aos conselhos escolares para interromper a prática de futebol americano.[2] O comunicado à imprensa mencionou as palavras do superintendente das escolas públicas locais, Clayton Wilcox: “não há nada mais importante do que proteger nossos alunos atletas. Agora que entendemos as descobertas desse estudo, estamos determinados a fornecer o Fifth Quarter Fresh a todos eles”. Wilcox disse a um repórter do Stat News que planejava comprar 25 mil dólares do leite, pois “muitas crianças simplesmente não bebem mais leite”, e o Fifth Quarter Fresh “realmente encontrou a receita secreta”.[3]

O comunicado recebeu muita atenção da mídia, embora não tenha sido o tipo de atenção que a universidade queria. A Health News Review, organização que avalia a clareza e a precisão desses comunicados, classificou a informação como “altamente insatisfatória”. A avaliação mencionou que “quase não há fatos nesse comunicado pretensioso. Os poucos fatos existentes divulgam vagos benefícios neurológicos de um determinado leite com chocolate”. Também observou que o informe não havia dito nada sobre o que havia melhorado, o nível de melhoria, o estudo em si ou a composição da bebida. Conclusão: o material “pode aumentar ainda mais o consumo de uma bebida que, gota a gota, tem mais calorias e quase tanto açúcar quanto a Coca-Cola”.[4]

É verdade. O Fifth Quarter Fresh contém apenas quatro ingredientes: leite desnatado, açúcar, cacau em pó e vitaminas. A garrafa de quatrocentos mililitros fornece cerca de quarenta gramas de açúcar — mais de dez colheres de chá —, o que faz com que a bebida não seja nada além de leite desnatado adoçado com chocolate e suplemento vitamínico. Você pode fazer isso em casa facilmente. Em 2017, porém, o site da empresa (não mais disponível) se gabou de que a bebida continha leite de vacas “supernaturais”, era livre de produtos químicos e conservantes e “combinava o melhor das bebidas com proteína (20g) e uma excelente fórmula para reidratação, incluindo níveis insuperáveis de cálcio e vitaminas A e D”.

Um integrante da Health News Review cobrou explicações da universidade. “O que ouvi me surpreendeu”, relatou. “Não encontrei nenhum artigo de jornal porque não havia nenhum. Não havia sequer um relatório não publicado que eles pudessem me enviar”.[5] A imprensa de Baltimore também ficou chocada e confusa com a decisão da Universidade de Maryland de fazer um comunicado sobre um estudo que ainda não havia sido revisado ou publicado em um periódico.[6] O Baltimore Business Journal obteve um resumo do estudo e uma apresentação em PowerPoint, mas não pôde divulgá-los. A revista New York forneceu um link para a apresentação de PowerPoint — única fonte de informação sobre o tema real dessa pesquisa.[7]

Repórteres observaram que a execução havia sido mal planejada — não havia comparado os efeitos do Fifth Quarter Fresh com os de outras marcas de leite com chocolate ou com qualquer outra bebida adoçada. Em vez de pesquisadores experientes, dependera de departamentos atléticos para administrar o teste e fornecer o leite aos jogadores, e tomara como base experimentos cognitivos de validade questionável. Além disso, Shim não tinha exigido a anuência dos jogadores nem a permissão dos pais e não revelou a fonte de financiamento.

Em resposta ao tumulto midiático, a universidade nomeou uma comissão. Um relatório foi publicado em março de 2016.[8] Tratou principalmente do fracasso da universidade e de Shim em observar protocolos de ética de pesquisa. E revelou alguns detalhes interessantes. A empresa controladora do Fifth Quarter Fresh tinha fornecido apoio para salários e materiais de pesquisa, e um grupo de laticínios da Pensilvânia destinou duzentos mil dólares para Shim. O comitê ficou consternado com a ignorância generalizada sobre princípios éticos básicos. Shim, por exemplo, não considerou o financiamento como conflito de interesses porque o dinheiro foi para o estudo e não para ele, pessoalmente.

O comitê aconselhou a universidade a se certificar de que os futuros comunicados tratem apenas de trabalhos publicados e com fontes de financiamento divulgadas. Disse que todos pesquisadores, funcionários e estudantes de pós-graduação devem passar por treinamento obrigatório acerca dos princípios de conflito de interesses. Aconselhou a instituição a devolver os recursos e doações recebidos de empresas de laticínios e a remover do site todas as menções a esse episódio. A universidade cumpriu as determinações e estornou quase 230 mil dólares.[9]

Mesmo assim, Julia Belluz, do site Vox, julgou a universidade “incrivelmente irresponsável” por “comportar-se como uma máquina de marketing para uma empresa de laticínios”.[10] A Health News Review criticou o comitê por não ter enfrentado adequadamente a falta de transparência da universidade. A repórter Candice Choi se aprofundou no assunto e obteve e-mails trocados entre o Fifth Quarter Fresh e o pesquisador. A pressa na publicação do comunicado foi finalmente explicada: a empresa queria que os resultados do estudo coincidissem com o lançamento do filme Um homem entre gigantes (2015), de Peter Landesman, que expõe décadas de falta de iniciativa da Liga Nacional de Futebol Americano em lidar com o traumatismo craniano.[11] Só posso imaginar o que esse “estudo” poderia ter feito pelas vendas do Fifth Quarter Fresh.

Se não freiam pesquisas patrocinadas pela indústria e contam com pesquisadores aferrados a altos padrões de conduta ética, as universidades colocam sua reputação em sérios riscos. Às vezes, como nesse caso, sai tudo errado, e a ciência acaba sendo transformada em piada.[12] Quando mantêm altos padrões éticos para todos — estudantes, professores, administradores e até pessoal de relações públicas —, as universidades ganham prestígio.


[1] “Concussion related measures improved in high school football players who drank new chocolate milk, umd study shows”, material de divulgação à imprensa, 22 dez. 2015.

[2] bloom, B. M.; kinsella, K.; pott, J. et al. “Short-term neurocognitive and symptomatic outcomes following mild traumatic brain injury: A prospective multicenter observational cohort study”. Brain Inj., 2017, v. 31, n. 3, pp. 304-11; mex, J.; daneshvar, D. H.; kiernan, P. T. et al. “Clinicopathological evaluation of chronic traumatic encephalopathy in players of American football”. jama, 2017, v. 318, n. 4, pp. 360-70; kucera, K. L.; yau, R. K.; register-mihalik, J. et al. “Traumatic brain and spinal cord fatalities among high school and college football players—United States, 2005—2014”. mmwr, 2017, v. 65, n. 52, pp. 1465-69; margolis, L. H.; canty, G.; halstead, M.; lantos, J. D. “Should school boards discon-tinue support for high school football?” Pediatr., 2017, v. 139, n. 1, e20162604.

[3] “Can chocolate milk speed concussion recovery? Experts cringe”. Stat News, 11 jan. 2016.

[4] holtz, A.; freedhoff, Y.; stone, K. “Release claiming chocolate milk improves concussion symptoms in student athletes is out-of-bounds”. Health News Review, 5 jan. 2016.

[5] holtz, A. “Why won’t the University of Maryland talk about the chocolate milk/concussion study it was so eager to promote?”. Health News Review, 11 jan. 2016.

[6] “University of Maryland crosses ethical boundaries with chocolate milk study, experts say”. Baltimore Bus Journal, 12 jan. 2016.

[7] “The University of Maryland has a burgeoning chocolate-milk concussion scandal on its hands”. New York Magazine, 20 jan. 2016.

[8] wylie, A. G.; ball, G. F.; deshong, P. R, et al. “Final report, ad hoc review committee”. Universidade de Maryland, 24 mar. 2016.

[9] “University of Maryland committee finds fault in school’s research, promotion of chocolate milk study”. Baltimore Bus Journal, 1o abr. 2016.

[10] “The University of Maryland just released a report on its incredibly irresponsible chocolate milk research”. Vox, 1o abr. 2016.

[11] “U of Maryland review: Researcher on flawed chocolate milk/concussions study failed to disclose big dairy donations”. Health News Review, 1o abr. 2016; “Chocolate milk maker wanted study touted with ‘Concussion’”. The Washington Post, 19 abr. 2016; bachynski, K. E.; goldberg, D. S. “Time out: nfl conflicts of interest with public health efforts to prevent tbi”. Inj Prev., 15 nov. 2017.

[12] caulfield, T.; ogbogu, U. “The commercialization of university based research: Balancing risks and benefits”. bmc Med Ethics, 2015, v. 16, p. 70.


Tags:  #comidadeverdade ciência contra a saúde comida de verdade Marion Nestle pesquisa Verdade Indigesta viés

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