criança e mídia / 6 de agosto de 2014

Um bate-papo sobre infância, brincadeiras e consumismo com Luiz Trópia

Entrevista feita por Desirée Ruas*

 

Interação, movimentação e imaginação: o que nossas crianças estão deixando de vivenciar enquanto ficam horas em frente às telas de tablets e celulares? O que os brinquedos e as brincadeiras de ontem ensinam às crianças de hoje? O entrevistado é Luiz Fernando Vieira Trópia, sociólogo, produtor cultural e membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore. Um grande incentivador do resgate de uma infância que constrói seus próprios brinquedos e brinca nas ruas e nas praças das cidades.

 

Como você vê a questão do consumismo infantil na nossa sociedade atual?

O consumismo é uma ocorrência desastrosa para a sociedade humana. Faz parte de uma cadeia que vem desde a industrialização, do imperialismo cultural, passando pelo nossa adoção do modelo de vida americano em detrimento do europeu, do recrudescimento da sociedade globalizada e da massificação promovida pelos meios de comunicação, principalmente pela televisão, nas mãos de grupos poderosos e com parceiros nos grandes trustes internacionais. Resultou na cultura do modismo, do consumo desenfreado, do descartável… Até descobrirem que as crianças seriam o alvo perfeito ou as principais vítimas do consumismo. Os programas infantis, apresentados por famosidades pouco interessados na cultura popular e com as brincadeiras folclóricas, como Xuxa, Gugu, Angélica, Eliana… passaram a impor modelos importados, desprezando a infantilidade, promovendo a adultização e erotização das crianças, seja na produção musical de gosto duvidoso, na promoção dos produtos ou brinquedos fabricados por grandes empresas, ou no próprio modelo de vestuário, tipo adulto e sensual. Ao colocarem isso nos seus programas, criaram uma chantagem com os pais na aquisição desses produtos e hábitos para seus filhos.

Se esses programas infantis de TV estivessem nas mãos de músicos e educadores mais comprometidos com a nossa cultura (como Rubinho do Vale, Doroty Marques, Bia Bedran, Victor Batista, Grupos Serelepe, Pandalelê, do Brasil, ou Diego Marioni, Cecília Raspo, do Grupo La Carreta, Coqui Dutto, Ely Burba, da Argentina), esse consumismo junto ao público infantil não tinha prosperado e teríamos a preservação e o desenvolvimento dos hábitos da cultura popular e suas manifestações sobre a forma musical, de brinquedos e brincadeiras saudáveis, criativos e educativos.

Como eram as brincadeiras e os brinquedos de antigamente? O que mudou?

Os brinquedos tradicionais e folclóricos são (e não eram, porque não se extinguiram, como costumo defender) intimamente ligados à cultura de cada grupo social, sua história, função, recursos, espaço e necessidades peculiares, ao mesmo tempo que são universais, pois ocorrerem em várias partes do mundo, com suas variantes e peculiaridades, é claro! Geralmente, esses brinquedos e brincadeiras são feitos com matérias-primas comuns no meio do grupo, com o simples aproveitamento de sucatas, sobras caseiras, ou objetos encontrados nos mesmos locais de realização, como nas ruas, calçadas, passeios do meio urbano ou nos terreiros dos vilarejos e do meio rural. Têm uma dinâmica e participação ativa das crianças, ao contrário da passiva apenas, como nos brinquedos industrializados.

Não vejo só a questão da falta do espaço na cidade, da insegurança das ruas, trânsito e assaltos como os únicos motivos pelo sumiço das brincadeiras folclóricas. Acho que isso é uma desculpa para quem se entregou aos apelos e chantagens da mídia na aquisição dos brinquedos industriais e eletrônicos, por comodismo em não repassar aos seus filhos a riqueza vivida antes. A própria instalação da TV nos hábitos domésticos foi acomodando os pais que, em seguida, passaram a ser reféns dos patrocinadores desse mesmo meio de comunicação. Se as crianças e seus pais continuassem a ocupar os espaços disponíveis, a se apropriarem das praças, locais de lazer dos prédios e quintais das casas, não haveria tanto medo e insegurança, pois o poder público teria que manter tais condições.

O resgate dos brinquedos e brincadeiras de antigamente pode nos ajudar a combater o consumismo infantil? De que forma?

Não há dúvida de que se os pais, escolas e instituições voltadas para o lazer, resolvessem resgatar as brincadeiras tradicionais, o consumismo seria atingido em cheio. A própria construção dos brinquedos pelas próprias crianças já é um fundamento dessas brincadeiras e é também uma forma de lazer criativo e saudável. Temos que acreditar nisso!

Na sua opinião, como podemos incentivar as crianças a brincar, interagir e a ter um desenvolvimento pleno com atenção especial aos valores e ao respeito com os outros e com o planeta?

A retomada dos hábitos e valores da Cultura Popular por pais e escolas, com a utilização de matérias-primas do meio e recicláveis nos brinquedos e brincadeiras, já constitui uma forma implacável de protegermos o planeta, combatendo o consumismo.

A Cultura Popular preserva valores de sociabilidade, interação, comunicação e colaboração, dentre outros, que podem fortalecer os nossos laços humanos e sociais. No caso da lúdica folclórica, esses valores estão presentes desde os acalantos, cantigas de berço, passando pelas adivinhas, parlendas, cantigas de roda, brinquedos e nas dinâmicas das brincadeiras.

Identidade cultural, globalização e consumismo. Na sua opinião, como tais elementos se misturam nos dias de hoje?

Ao resgatarmos os traços da nossa cultura autóctone, estamos recuperando a identidade cultural, mesmo dentro do processo de globalização, que não é de todo ruim. A globalização é uma realidade irrefutável, mas pode ser vista pelo seu lado positivo também, na troca de experiências e de hábitos culturais entre os povos, desde que acolhidos espontaneamente e não impostos, massificados, ou só de uma nacionalidade, como faz a mídia atual. Agindo assim, combateremos o consumismo, que só serve para enriquecer ainda mais os grandes trustes e aumentar as desigualdades sociais.

Há uma frase de um canto do urso Balu do desenho animado “Mogli – O Menino Lobo”, que foi inspirada na filosofia de Epicuro, que diz assim: “Somente o necessário. O extraordinário é demais. Por isso nesta vida eu vivo em Paz”. Se contentássemos apenas com o necessário, anularíamos a ambição, motivo de todo o sofrimento, das guerras e violências entre os humanos.

Essa é minha utopia, minha filosofia de vida. Para mim, utopia não é algo inatingível, mas sim a propulsora de um sonho possível e realizável.Tudo que se criou ou se fez neste mundo, a cultura em si, foi um dia um sonho de alguém. A volta do hábito dos brinquedos e das brincadeiras tradicionais é para mim uma utopia, um sonho real.

É nesse sentido que temos insistido com uma máxima de um radialista e produtor cultural cordobês-argentino, Julio Villarroel, ao afirmar que: “o acesso às artes e a defesa de uma identidade cultural, como a saúde, a educação, a vivência da Terra, da água e do ar puros, são necessidades básicas do ser humano. Convencidos disso, estamos sustentando utopias (sosteniendo utopías)”.

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Trópia: “A retomada dos hábitos e valores da Cultura Popular por pais e escolas combate o consumismo”
Foto: Rodrigo Avelar Fotografia

 

Texto gentilmente cedido pela autora, publicado anteriormente no blog Consiciência e Consumo.

(*) Desirée é mãe de duas, jornalista, especialista em Educação Ambiental, coordenadora do Movimento Consciência e Consumo, de Belo Horizonte. Atua em causas como defesa da infância e combate ao consumismo infantil, leitura crítica da mídia, direitos e deveres do consumidor e ações socioambientais por uma vida mais saudável.  www.conscienciaeconsumo.com.br



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