Texto especial para o Milc de Mariana Sá*
Diante da leituras dos comentários num dos posts sobre o assassinato de Ítalo, uma criança de dez anos morta depois de uma perseguição policial, no Morumbi (São Paulo), o Milc recomenda que todos vejam o documentário O Começo da Vida e se concentrem na segunda parte.
O documentário sobre a importância da infância para o pleno desenvolvimento do ser humano está disponível na Netflix e na web.
Veja os traillers: sobre negligência, pobreza extrema e o desejo de ser mais presente
/ALERTA: a partir daqui contém spoiller/
Na primeira parte a porrada é nos pais e mães de classe média, que mesmo podendo escolher proporcionar uma criação suficientemente e repactuar uma divisão mais equânime dos cuidados com as crianças entre homens e mulheres, decide-se pelo caminho do consumismo e relega as crianças pequenas a um segundo plano sob o argumento de que precisam trabalhar por muitas horas para proporcionar uma suposta qualidade de vida para os filhos. É o momento que um outro filme passa na nossa cabeça: o nosso, o que fizemos de bom e de suficiente e as nossas ausências e culpas (que por mais que nos dediquemos, sempre existem).
Na segunda parte a porrada é ainda maior pois alcança todos os cidadãos, todos os governos, todas as corporações, todos nós que somos parte da raça humana. Diante das carências provenientes da pobreza extrema, nos perguntamos o que falhou no nosso processo de civilização: se todo o nosso cuidado com “os nossos” filhos nos pareceu insuficiente vendo o que uma criança realmente precisa, o que dizer de crianças que não têm acesso à água, energia, educação, saúde e justiça? O que dizer de uma criança que cuida de mais dois irmãos enquanto providencia o alimento e conserta o telhado enquanto a mãe se exaure na construção civil para poder pagar a dívida que contraiu para comprar sangue para um dos filhos que estava morrendo? O que dizer de uma criança sem sonhos?
E, diante das consequências da pobreza extrema mundial mostradas neste filme que não são muito diferentes das condições de muitos bairros periféricos das grandes cidades, se estas pessoas que disseram que criança (supostamente) armada não é mais criança não se sentirem mal, jamais entenderão o que a utopia do Milc, jamais entenderão o que sentimos ao saber deste homicídio.
Se as juízas do facebook não se sentirem estranhas ao ostentar o privilégio de PODER ESCOLHER CRIAR CORRETAMENTE OS PRÓPRIOS FILHOS, jamais entenderão que não é sobre “o meu filho” ou sobre “a minha culpa” ou sobre “o que falta aqui em casa”, mas sobre um projeto de civilização mundial em que há quem aceite e seja conivente com a existência de:
– crianças passando fome
– crianças sofrendo violências físicas
– crianças expulsas de seus países
– crianças estupradas
– crianças sem energia e água
– crianças fora da escola
– crianças sem assistência médica
– crianças tratadas como adultos
– crianças assediadas pelo consumismo
– crianças negras assassinadas pelo polícia.
E aí, se diante de tudo o que você vir no flime, ainda optar por sustentar as teses de individualização da culpa, não dá para prosseguir na conversa, nem sobre regulamentação da publicidade infantil, ou redução da maioridade penal, tão pouco sobre a crueldade de aplaudir PMs que matam crianças.
(*) Mariana é mãe de dois, publicitária e mestre em políticas públicas. É cofundadora do Milc e membro da Rebrinc. Mariana faz regulação de publicidade em casa desde que a mais velha nasceu e acredita que um país sério deve priorizar a infância, o que – entre outras coisas – significa disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças.
Tags: criação educação infância o começo da vida prioridade absoluta proteção à infância