outros / 15 de abril de 2021

Educação Financeira – Crianças não precisam de cartão de crédito

Texto especial para o Milc de *Vanessa Anacleto

Um banco que diz ter uma proposta inovadora acaba de lançar no Brasil um produto que já existe em outros países: cartão de crédito para crianças a partir de 10 anos. Segundo o Banco, o cartão era uma demanda de pais que desejam dar uma educação financeira para os filhos. Será? Cada vez mais nos sentimos vivendo o mundo invertido e é isto mesmo que parece, virou tudo de cabeça para baixo. Tem gente achando que dar um cartão de crédito para crianças educa para o consumo. Não é bem assim.

Antes de pensar em educar para o consumo, precisamos definir o que é consumo. Dizer que consumir é comprar coisas é uma resposta simplista. Nós não compramos coisas apenas. Tudo começa antes de comprar. Antes de gastar nós precisamos ganhar o dinheiro.

E como ganhamos o dinheiro para consumir? Como não somos especuladores do mercado financeiro, nós trabalhamos. Vendemos nosso tempo de vida realizando atividades com o conhecimento que acumulamos após anos de estudo e treinamento, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade. Estou imaginando uma situação ideal. Alguém que trabalha feliz , todo mundo deveria ter este direito. Mas, ainda que o nosso trabalho não seja, em determinado momento, uma maravilha, deveríamos poder trabalhar e ganhar nosso sustento.

Pelo tempo de trabalho, um tempo de deixamos de estar com a família, de fazer outras coisas que gostamos, de descansar ou ir à praia, recebemos uma remuneração em dinheiro. Este dinheiro será usado para comprar coisas (agora sim, consumir) e obter serviços que necessitamos e outros que nem necessitamos apesar de pensarmos necessitar. Trabalhamos, ganhamos e gastamos como achamos que devemos e precisamos. Ok.

Não deveríamos trabalhar só para consumo, mas nossa sociedade chegou ao ponto de impor este modo de vida. Não é sobre isso que trataremos aqui, mas da ideia que as crianças fazem consumo (e talvez muitos adultos também).

Do ponto de vista do Banco que teve a grande ideia de criar um cartão para as crianças aprenderem a gastar, consumir significa utilizar o dinheiro que mamãe ou papai disponibilizaram na conta com critério. É esta a ideia que as crianças acabarão tendo. Talvez seja possível aprender que não se pode ter tudo e que, ao comprar uma coisa é preciso pensar bem. Dizer sim para uma compra significa dizer não para outras tantas. Quando o limite estourar, não dá para comprar mais. Ou pode. Limites podem ser melhor negociados com papai e mamãe que com os bancos.

Não bastasse essa flexibilidade de crédito quando os pais acabam virando os banqueiros, não sabemos como a criança aprenderá a lição do consumo consciente se falta a ideia fundamental sobre de onde veio aquele limite de crédito. Quem trabalhou para aquele dinheiro ser colocado a disposição dela e o que isso significa? Como as crianças lidarão com as faturas. Quem paga o boleto nessa aula de educação financeira é o banqueiro? Opa, não vale dizer que é com a mesada delas.

O que é trabalho? As crianças sabem? Se perguntarmos pode aparecer alguma resposta sobre aquele lugar para onde mamãe e papai vão todos os dias (agora na pandemia pode ser aquele computador que absorve meus pais durante o dia).

Para que os pais trabalham? Alguns já sabem dizer que é para dar coisas aos filhos. É pra isso mesmo que trabalhamos? Realização pessoal está ficando um pouco para trás em um contexto de crise como o que vivemos. Estamos, em maioria, trabalhando para sobreviver, comendo e pagando os boletos. Talvez até mesmo esses pais que pediram pro Banco criar um cartão de crédito para os filhos deles já estejam vivendo assim. A verdade é que eu realmente acho que essas pessoas não existem.

“Poxa, mas eles já nascem sabendo tudo, são superconectados. É muito importante eles saberem usar um cartão”, alguém deve dizer. Acreditem, eles saberão usar perfeitamente um cartão quando forem senhores de seu crédito e suarem para pagar suas próprias contas. E não será a utilização precoce de um cartão plástico brilhante com bandeira que os educará para isso. A educação necessária para usar um cartão de crédito passa pela consciência de que crédito é algo que não deve ser usado para nos tirar de um sufoco ou comprar o que não é absolutamente necessário, ou comprar sem a certeza de lastro para pagamento da droga do boleto. Cartões de crédito servem para conveniência e não para crédito. Cartão de crédito é coisa boa sim, para os bancos.

E vivemos o tempo em que tudo virou Banco. Qualquer site de vendas de geladeira, fogão, televisão, é muito mais banco que loja, atualmente. Quando você compra qualquer bem de consumo que precise ser parcelado ele já é vendido a prazo pela própria rede varejista com juros bancários. Aquele local ou site não é mais uma loja que quer te vender um produto, mas um banco que quer te vender um produto a prazo. Como a maioria de nós não consegue comprar o bem à vista, o que seria muito mais barato, pagamos juros aos vendedores em dia, ficamos mais pobres e achamos que somos educados para o consumo.

Tudo bem, vá lá, nós somos educados para consumir. Consumir o que nos dizem que precisamos consumir e do jeito que precisamos consumir. É mais ou menos isso que as crianças precisam saber. E também:

Que a maior parte do tempo dele de adulto precisará será vendido em troca um pagamento que seja digno;

Que com este pagamento de valor digno ele terá que manter seu estilo de vida;

Que o maior bem que ele pode almejar é paz;

Que a vida mais simples custa menos, não só financeiramente como pessoalmente;

Que ninguém é mais feliz por acumular bens de consumo, por mais estranho que isso possa parecer atualmente;

Que coisas como o amor de sua família não podem ser transformados, nem pagos em dinheiro;

Que o fato de não poder comprar um determinado bem imediatamente pode ser mais positivo que negativo. Se o bem não for de necessidade urgente, o melhor será economizar para comprar à vista no final;

Que crédito é algo para sua conveniência e não para se endividar ( preciso repetir isso);

Que bancos deveriam usar seu lucro assombroso para fomentar uma sociedade melhor;

Que a felicidade não tem bandeira visa, apesar de propaganda viver dizendo o contrário.

*Vanessa Anacleto é co-fundadora do Milc.


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