Texto de Dani Brito*
Há quem ache que uma infância feliz é medida pela quantidade de açúcar que esta ingeriu ao longo de sua vida, pela quantidade de brinquedos que amealhou, pela quantidade de tempo gasto pacificamente em frente à televisão, tabletes, computadores ou quaisquer outra isca eletrônica. Baseado nesse discurso, percebe-se nitidamente a deturpação do conceito de infância.
Esta deveria ser uma fase cheia de ludicidade, fantasia, experienciações, vivências, afeto, presença, cuidado, incentivo. Empanturrar os filhos com “tudo o que está aí” disponível, não coloca ordem nem referência nas vidas das crianças. Atribuo aos publicitários – que são apenas uma das peças que incute a lógica de consumo na nossa sociedade – a reprodução da idealização desta falácia de que a felicidade, o carinho, o afeto são mensurados a partir de coisas consumidas/consumíveis.
Para darmos prosseguimento a este texto, vou pegar carona no raciocínio do Sakamoto e pedir que evitemos a lógica binária:
Criança que possui uma alimentação saudável = criança que está perdendo alguma coisa?
Pais/Cuidadores preocupados com o que entra em seu lar = superprotetores?
Criança que não assiste à televisão = alienada?
Tenho uma filha de 11 anos que quando criança, fora como qualquer outra. Gostava de correr, pular, inventar histórias e da nossa companhia. Gostava de rosa – mentira, cismou com esta cor de forma quase doentia aos três ou quatro anos: saias rodadas, princesas e até daquela boneca anoréxica, loira e rica (mais alguém aí?).
Não gosto de rosa, sempre detestei saias e nunca nunquinha comprei uma dessas bonecas para ela. É o que costumo chamar de tranqueiras inevitáveis – surgem quando convivemos com muitas pessoas fora do nosso nicho. O que poderia fazer? Proibir? Desfazer-me de presentes dados de tão boa intenção? Não, nunca.
Para darmos prosseguimento a este texto, preciso deixar claro que o papel que assumimos foi o de apresentar novas possibilidades, disponibilizar novos caminhos, oferecer alternativas, DAR OPORTUNIDADE DE ESCOLHA.
Então sempre que minha casa era invadida pelas ~tranqueiras inevitáveis~ eu a deixava, num primeiro momento, à vontade com o novo brinquedo até que esgotassem todas as possibilidades de brincadeiras com ele. Passada a fase exploratória, mostrávamos novas brincadeiras que se adequavam àquilo que julgava apropriado para a idade, ou seja, brincadeiras que permitissem à criança criar mundos de fantasia a partir de si. E não é que sempre obtivemos sucesso a ponto das tranqueiras sempre jazeram no fundo dos armários?
A partir disso, nossas conversas giravam em torno de escolhas e de que nenhuma delas passam incólume ao coletivo, ou seja, que cada escolha implica
O desafio que tomei para mim é o de mostrar que tudo pode mudar, desde que mudemos de pólo e passemos a agir ativamente contestando sempre tudo o que está vigente. Pois o que é normal de acordo com nossas regras não é necessariamente natural, desejável.
A adolescência chegou e ela se parece como qualquer outra da idade dela. Tem os cabelos azuis, conserva os livros Persépolis e Coraline na cabeceira da cama; não come fast-food há uns quatro anos, desde que assistiu na escola ao documentário Super Size Me; tem muitos amigos e adora estar com eles; diminuiu, baseada em informação, seu tempo de exposição à tv e ao computador e o consumo de industrializados; como muitos de sua idade só anda com um fone de ouvido e sua playlist é bem variada: vai de Van Halen a Red Hot Chili Peppers; se diz feminista porque entende que todas as mulheres são pessoas e se interessa pelo estudo de religiões desde que meteu na cabeça que vai encontrar uma que não lhe pareça machista.
Como muitos de sua idade cria marcas de identificação. Como mencionei seu gosto musical, acho que cabe contar aqui algo que aconteceu por esses dias e que ilustra bem o propósito desse texto. Ela adora e só ouve rock ao contrário de algumas meninas de sua escola, por óbvio. Ninguém é obrigado a compartilhar de nossos gostos. Sugeri que ela ouvisse outros ritmos musicais para perceber a pluralidade do mundo. Excluir e taxar as amigas que gostam de funk/pagode/sertanejo não era uma atitude legal. Nenhuma forma de segregação é. Contei que na época da escola fui do grêmio estudantil e que tínhamos uma rádio para animar o recreio em que cada dia da semana era dedicado a um estilo musical. Ela gostou tanto que levou a ideia para o professor de música da escola municipal em que estuda. Pois não é que ele comprou a ideia e esta semana começarão a trabalhar coletivamente para implementar uma rádio? Para que todos possam ouvir e ser ouvidos.
Ter amigos. Ser feliz. Propor mudanças. Ser ativo. Ser humano.
Bom, sinto contrariar àqueles que dizem que crianças criadas de forma consciente com o propósito de se tornarem pessoas conscientes crescerão “revoltadas”. Bobagem! Falácia! Crianças criadas de forma consciente, serão sujeitos mais ativos no mundo e não consumidores domesticados.
A preocupação deveria ser voltada a todos àqueles criados sob o credo consumista, que têm seus vazios preenchidos por coisas sem valor mas que custam muito caro, que levam uma vida com total ausência de sentido, embora docemente palatável.
Quem assume a postura de orientar, que é muito diferente de proibir, estabelece com os filhos uma comunicação de mão dupla. Não seríamos tão importantes se os filhos fossem auto-suficientes e tivessem senso claro de direção. Não podemos permitir que os jovens sejam criados por eles mesmos, numa relação horizontalizada, tentando corresponder às expectativas imaturas do grupo de pares. Precisamos ser em casa, na escola e na comunidade o norte a lhes apontar o caminho.
Como costumo dizer, construir um vínculo não só de afeto mas sobretudo de confiança, cooperação, criatividade e transcendência demanda tempo e requer comprometimento. Uma criança é capaz de entender, desde que se tenha tempo para explicar. Um adolescente tem muito a dizer, desde que se tenha tempo para ouvir.
É possível fugir da hipnose da falsa felicidade proporcionada pelo consumo, desde que se empenhe.
É possível desde que não hajam dúvidas.
Não lhes deixe faltar o essencial: sua presença, seu olhar, seu afeto.
Não estão disponíveis no mercado, não possuem conservantes, açúcar ou sódio. Mas são de fácil acesso.
Use sem moderação.
Imagem da obra Small Moons de Sutton Beres Culler
(*) Dani é mãe de dois. Graduanda no curso de Direito, prometeu não se deixar contaminar pela ala conservadora e fugir do senso comum. Aprendeu a encarar a maternidade como ato político, usando do pressuposto que tem de gerir e potencializar o seu bem-estar para fazer escolhas e responsabilizar-se por elas. Por isso, acredita numa maternagem com afeto, responsabilidade e ética. É autora do blog materno Balzaca Materna. www.balzacamaterna.com.br
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