Texto especial para o Conexão Infância por Vanessa Anacleto*
“É preciso toda uma aldeia para criar uma criança”, diz o provérbio africano. Quando meus avós maternos começaram a formar sua família, em 1940, ser mãe e ser pai consistia no mesmo tipo de tarefa que eu comecei a encarar, em 2007: trazer uma criança pra este mundo louco. O mundo já era bem louco no meio da Segunda Guerra Mundial. Apesar de termos a tendência a romantizar o passado, a vida a mesma, apenas mais difícil em muito aspectos e mais simples em tantos outros, para os nossos avós.
Existia, contudo, algo que era mais simples e que absolutamente importante. Minha avó pariu naturalmente e em casa todos os 5 filhos. Bastava sentir as primeiras dores para que meu avô fosse chamar a parteira que morava na rua de cima e telefonasse para suas tias . As mulheres vinham durante a noite e ajudavam no parto. Minha mãe, a filha mais velha, conta que minha avó sempre fazia o café da manhã na manhã seguinte ao nascimento dos filhos. As tias ficavam uns dias para dar uma mão e a vida seguia.
Minha avó nunca cogitou que seu leite fosse fraco. Quando tinha dificuldade apareciam as mulheres da família e as vizinhas para ajudar com suas experiências. O tempo foi passando até que um dia minha avó passou a ir ajudar também nos partos e aconselhar as sobrinhas mais novas. Uma rede de apoio era formada entre as mulheres da família e vizinhança de forma natural. Sempre tinha sido assim. E sempre seria assim, minha avó pensava. Até que minha mãe cresceu e se casou no final da década de 60.
A indústria e a propaganda haviam se sofisticado, Minha mãe, filha de uma mulher que pariu todos os filhos em casa, junto com boa parte da sua geração, foi contra tudo isso e quis ter seus filhos no hospital. Já não se cogitava nada diferente nos anos 70. As avós não poderiam ser comparadas eram comparadas aos médicos. Avós e tias foram substituídas por revistas de parentalidade e manuais escritos por profissionais da puericultura. E neste contexto eu nasci. Fui uma menina do meu tempo, criada não para casar e ter filhos, mas para ter uma vida intelectual e profissional antes disso. Como as mulheres do meu tempo, engravidei depois dos 35 anos e não sabia quase nada sobre parir e não tinha rede a minha volta. Nenhuma tia, nenhuma avó que soubesse mais que os manuais. Sem muitas referências reais fiquei perdida .
Será que isso é normal? Aquilo é normal? A quem perguntar? Com quem conversar sobre toda a transformação que acontece na minha vida de quase mãe, de recém mãe? Bem, agora existem cursos para gestantes. Lembro que fiz um curso de uma manhã. Valeu a pena. No final do curso houve um sorteio de brindes e eu ganhei o primeiro prêmio. Fui fotografada com um cheque gigante para trocar por roupinhas de bebê. As roupinhas eram ótimas. Não aproveitei nada do curso. Filho não se cria a partir de curso. Cada filho é um curso intensivo e exclusivo.
Como a maioria de nós não tem mais redes de apoio, nossa aldeia agora é digital. A maioria de nós participa de algum grupo de mães ou de pais na rede e debate algum tema relacionado a filhos, ou vários temas ao mesmo tempo. No início de 2012 eu conversava num grupo de Facebook chamado Consumismo e Publicidade Infantil. Esse grupo ainda existe e possui 4000 membros atualmente. Eu estava tentando entender a influência que a publicidade começava a exercer sobre o meu filho de quatro anos. E me dei conta de que alguma coisa estava errada com os canais infantis que ele assistia quando eu cheguei em casa do supermercado um dia, e ele correu pra cozinha dando pulinhos: “Que legal, mamãe, você comprou!!” “O que, meu filho?” “Pato Purific!”. Ora! Pato Purific é um produto de limpeza que anuncia em canais fechados infantis até hoje. Eu precisava de ajuda e só a rede poderia me ajudar.
Dentro do grupo encontrei pais, mães, educadores, publicitários, todos compartilhando a mesma perplexidade. Não era possível, pensávamos, que anunciantes pudessem assediar nossos filhos com tanta propaganda. Descobrimos que era possível. Nossos filhos sabiam dos últimos lançamentos muito antes de nós e estavam sendo levados a acreditar que valiam mais pelos bens de consumo do que por eles mesmos. Já existia uma causa: o Projeto Criança e Consumo já estava pressionando parlamento, justiça e governo por mudanças. Resolvemos lutar. Nos juntas à luta.
Nós do Milc encontramos nossa tribo e construímos nossa aldeia. Como cada mãe e pai presentes encontrou a sua ou deu um jeito de criar uma aldeia, a sua rede de proteção, mesmo que distante, mesmo que não presencial. Cada um de nós influencia de alguma forma e é influenciado nessa grande aldeia que é a internet. Acho que tudo o que nós todos procuramos, tudo o que tentamos passar para nossos leitores é o mesmo conforto que minha avó puérpera recebia e depois de um tempo resolveu dar em troca.
Estar num evento com outros pais e mães que estão na mesma grande aldeia que nós sempre foi um sonho. Trouxemos alguns de vocês aqui e agradecemos muito que tenham aceito o convite, pois achamos que já era hora de compartilharmos mais de perto nossas experiências, trocar ideias e olhar no olho. Saímos sempre renovadas do contato presencial.
(*) Vanessa Anacleto é mãe do Ernesto, blogueira e autora do livro Culpa de mãe. Por causa disso tudo, ajudou a fundar o Milc e luta por um futuro sem publicidade infantil. É autora do blog materno Mãe é Tudo Igual e membro da Rebrinc
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