outros / 7 de março de 2013

Realidade com script

Texto de R*

script4Eu ando bem envolvida no universo materno e ainda assim acho que não existe jeito certo de maternar. Minha filha tem cinco meses e acho que o único jeito certo é o jeito que eu e ela inventamos juntas. E cada dupla sabe o que é melhor pra si.

Porém, contudo, entretanto, tem coisas que eu acho que NÃO SE FAZ. Não por caga-regrismo. Mas porque somos humanos, e eticamente não devemos infligir ao outro qualquer tipo de violência.

Não tolero quem bate em criança. Acho desumano. Não tolero quem bate em adultos tampouco. Não tolero que digam mentiras para uma criança. Não tolero que mintam para os adultos também. Não acho certo você deixar alguém que você ama chorando e se esgoelando sozinho para aprender. Eu jamais deixaria minha mãe, meu marido ou minha irmã chorando em desespero e solidão se eu pudesse fazer algo por eles. Só pra citar alguns exemplos.

Quando estou em dúvida se devo ou não, posso ou não fazer algo com uma criança ou bebê, eu me pergunto como eu me sentiria se fizessem comigo. Ou se eu faria com qualquer adulto que eu amo. Porque, apesar de não entender tudo, criança é gente, basicamente, e deve ter seus direitos humanos respeitados.

Por essa lógica, o Game de Bebês no programa Mais Você é uma temeridade. O “especialista” Marcelo Bueno, que deu orientações sobre desmame, não sabe nada de amamentacão. O desmame só deve ser feito quando a mãe desejar e de forma natural ou de forma gradual e planejada, NUNCA de maneira abrupta como ele falou. São a Organização Mundial de Saúde e o Ministério da saúde que assim orientam com base em pesquisas e evidências científicas. Ele disse: “quando as crianças andam, as mães DEVEM acelerar a questão do desmame”. Uma mãe chorou. E com razão. Crianças andam por volta de um ano, a OMS recomenda o desmame a partir dos dois. Não estou dizendo que toda mãe deva amamentar até os dois anos, é muito tempo, é difícil para quem trabalha, mas ela só deve ser orientada ao desmame se quiser desmamar e não para criar PLOT prum reality show.

Sou roteirista e já escrevi para alguns realities. Sim, realities têm roteiristas. E criamos situações de conflito para que dramaturgicamente aquilo funcione. Em um certo reality em que eu integrava a equipe, criamos uma situação de privação de alguns alimentos. Vejam bem, ninguém passava fome. Apenas restrição de algumas guloseimas e alimentos específicos (light ou diet, por exemplo). Como entre os participantes existiam muitas restrições alimentares, a mecânica ficou complicada na hora de se alimentar. Não era só abrir a geladeira e pegar a última maçã. Em menos de uma semana, os participantes surtaram, chegando a se agredir verbalmente.

Me orgulho? Não.

Mas sei que colocar um especialista para sugerir desmame abrupto para as mulheres foi uma questão meramente narrativa, para “movimentar” a trama. O leite materno é um alimento psico-afetivo. Não é só nutricional, então é óbvio que, se você sugere o desmame para uma mãe que não deseja desmamar o filho, você cria um conflito entre o que ela acredita, sua prática cotidiana e o peso da palavra do “detentor do saber”. O cruel é que você está jogando com a saúde das crianças e abalando a confiança das mães, interferindo numa questão de foro privado e interferindo no delicado processo de estabelecimento do vínculo mãe-bebê, apenas, e somente apenas, para criar um conflito narrativo com o objetivo de atrair e fidelizar a audiência, que espera ansiosamente as cenas dos próximos capítulos. Infelizmente para os bebês participantes, eles são gente de verdade e não personagens.

Fora que, eticamente, colocar mulheres fragilizadas em ambiente estranho com seus bebês para competirem para aparecer numa propaganda de pomada para assadura é extremamente questionável. O Ministério Público deveria intervir usando o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ser personagem de reality show se configura OCUPAÇÃO, trabalho infantil. É errado. Não se faz.

A gente, com medo de conflito, tem muito medo de dizer que algo é errado, que não devemos fazer isso ou aquilo e acabamos caindo num limbo de permissividade e numa zona cinza onde tudo pode. Não pode, gente.

Não pode a diretora de um berçário dar na cara de bebês de um ano e fazer tortura psicológica com as crianças que não comem. Não importa o que o advogado dela diga. É errado. Tão errado quanto o reality da P&G confinar, estressar, orientar mal apenas com o objetivo de aumentar audiência, atrair anunciantes e gerar lucro. Sempre o lucro. Mas o prejuízo certamente fica na conta das mães que têm acesso somente à TV para tomar as melhores decisões a respeito dos seus filhos.

R* é mãe, carioca, roteirista, blogueira e feminista, não necessariamente nessa ordem. A identidade da autora e sua filha foram preservadas para evitar que a mãe tenha problemas profissionais e que a filha seja convidada para algum reality de bebês fofos.


Tags:  reality de bebês reality show

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Mariana Sá






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