outros / publicidade infantil / 13 de outubro de 2013

Somos o que defendemos

Texto de Ligia Moreiras Sena*

Durante todo o ano, o pessoal do Movimento Infância Livre de Consumismo dedica seu tempo e seu esforço a algo que, na verdade, todos nós precisávamos estar fazendo, pelo menos nós que reconhecemos a infância como fase fundamental na formação de um ser humano íntegro e saudável: proteger as crianças dos efeitos nefastos do consumo, evitar que as crianças sejam vistas como peças de manobra no jogo injusto do consumismo.

São mulheres que poderiam dedicar o tempo que dedicam à causa às suas questões estritamente particulares, mas fizeram uma escolha que ultrapassa os limites de suas casas e que se baseia em uma coisa muito simples: no fato de que se uma criança pode e merece ser protegida, então todas podem e merecem. Não faz sentido algum protegermos nossos filhos dos ataques publicitários – que são, na verdade, uma das expressões de outros tipos de ataques, tão ou mais danosos – enquanto seus amiguinhos e amiguinhas continuam a ser massacrados todos os dias pelos apelos do consumo.

Muita gente acha que isso é uma grande bobagem. E não é raro ver pessoas que detêm espaços amplos de divulgação desperdiçarem a grande oportunidade de contribuírem para o bem coletivo e substituí-la pelo discurso senso-comum que, muito claramente, serve somente para atrair ainda mais gente, geralmente pessoas imersas no senso-comum, vivendo vidas senso-comum, numa sociedade senso-comum, moldada pelo capitalismo massacrante senso-comum.

Nós vivemos em um mundo capitalista. Embora eu não tenha iPhone, iPad, tablets e outras tecnologias, escrevo agora do meu computador, que foi comprado. Visto uma roupa que foi comprada. Meu café está agora em uma caneca que foi, também, comprada. Mas viver em um mundo capitalista não significa ser moldado e domado por ele. Não significa tornar seus os valores de consumo que delineiam as relações de consumo. Relações humanas não podem ser interpretadas como relações de consumo.

E é aí onde muitas pessoas se perdem: na confusão entre valores de consumo e valores humanos. Entre valores de consumo e valores individuais. E a prova cabal disso é que nos tornamos pessoas que acreditam que amor, integridade, senso de responsabilidade, reflexão crítica e tantas outras coisas fundamentais podem ser compradas. Porque, afinal, comprar é muito mais fácil que ensinar. É muito mais fácil que orientar. É muito mais fácil que dedicar tempo e atenção a mostrar o que é ou não adequado, coerente, responsável. Por isso, tantas e tantas pessoas compram seus filhos desde a mais tenra infância.

Se você não for à escola, ou se atrasar, ou reclamar, vai pagar R$ 1,00”. O preço por não estar moldado a um sistema: R$ 1,00.

Se você não jantar ou não almoçar, vai pagar R$ 0,75”. O preço pelo não entendimento da importância do alimento e de se alimentar bem: R$ 0,75.

Se você ofender, xingar, brigar ou bater, vai pagar R$ 2,00”. O preço pela agressividade não orientada, pela não compreensão de que bater, xingar ou ofender dói no outro tanto quanto em si próprio: R$ 2,00.

Além de mostrar a essas crianças que quase tudo na vida pode ser comprado (e que para o resto existe Mastercard), o que estamos fazendo quando agimos assim? Estamos dizendo: “eu não sei te ensinar, mas te comprar eu sei”. Estamos dizendo: “você é uma mercadoria e, como tal, posso te comprar”. Não há, nessa relação, noções de educação e orientação. Há uma relação mercantil onde um detém o poderio econômico e o outro… é uma mercadoria.

Vamos pensar na relação estabelecida entre um presente e uma criança.

O que um presente produz na criança?

Satisfação. Alegria. Brilho no olhar.

Satisfação, alegria e brilho no olhar podem ser produzidos sem objetos, pela relação que se estabelece entre ela e as pessoas que a rodeiam? Podem. Devem.

Por que, então, transformá-los em capital?

Por que então comprar aquilo que pode ser produzido sem necessidade de colocar, sobre ele, o peso do capital?

Por que achar que datas específicas, criadas exclusivamente para fins capitalistas, pensadas para explorar pessoas, são momentos perfeitos para presentear nossos filhos?

Quem estimulou esse pensamento em você?

Que tipo de valores você está comprando e estimulando que outros comprem?

Por que sentir orgulho e satisfação por sua condição de explorado? E, pior, por que permitir que seus filhos também o sejam?

O Dia das Crianças não foi um dia criado para lembrar que toda e qualquer criança merece ser respeitada, cuidada, protegida – e não ser alvo da exploração capitalista. Não foi um dia criado para lembrar que toda criança tem direitos reconhecidos por uma Declaração Universal. Esse não seria o dia 12 de outubro, mas 20 de novembro, dia em que a Unicef oficializou a Declaração dos Direitos da Criança, em 1959.

O Dia da Criança é apenas uma data comercial, ganhou força no Brasil em 1955 como parte de uma campanha de marketing da Estrela, aquela empresa de brinquedos, que criou a “Semana do Bebê Robusto” (que nome…) com o único objetivo de impulsionar as vendas. E vendeu tanto que o país incorporou a data em seu calendário comemorativo.

Então você, que faz questão de incentivar o consumo nessa data e que se vê como dotado de opinião “própria”, está, na verdade, apenas reproduzindo aquilo que querem que você reproduza: que crianças podem ser exploradas comercialmente por um sistema que não pensa em você nem nelas, e que não há mal nenhum nisso.

Muitas mães e pais estão combatendo os apelos desenfreados, antiéticos e cruéis do consumo que vê na infância um alvo perfeito. E enquanto isso, suas crianças estão crescendo. É provável que se tornem adultos antes que o apelo ao consumismo infantil seja vencido.

Se assim for, o que terá sido importante a essas crianças?

Algo que deveria ser muito simples de supor: os valores transmitidos ao longo de toda sua infância. Crianças que cresceram imersas em um outro modelo, um modelo que não valorizou o COMPRAR, mas o SER.  Que não envolve apenas combater o apelo ao consumismo e à publicidade infantil. Que envolve uma compreensão absolutamente diferente do que é a vida, que perpassa a crítica ao consumo exagerado mas, também, a qualidade da alimentação, o tipo de educação, as relações humanas, as relações familiares, o cuidado com o outro, entre todos os demais fatores que, em conjunto, podem ser chamados de vida.

Isso nos leva à frase daquele pacificador tão conhecido: “A felicidade está no caminho”. E ela não pode ser comprada de nenhuma forma. Mesmo que você esteja fazendo muita força para achar que sim.

Quando fazemos as crianças acreditarem que “um dia dedicado a elas” está fundamentalmente atrelado a um “poder de compra” e ao consumo, estamos estimulando a associação entre “ser alguém e ter algo”, o que se traduz em um vazio emocional e na perda da importância das pessoas por seus valores intrínsecos. Pessoas se tornam importantes porque algo é comprado para elas, e não pelo simples fato de que são pessoas. E isso, feito de maneira repetida ao longo de toda sua vida, faz com que a construção de sua identidade esteja associada a compra e a produtos. E é exatamente isso que a sociedade capitalista deseja.

É compreensível que muitas pessoas tenham resistência a problematizar a questão e que não enxerguem o problema do apelo ao consumo que o dia das crianças traz, principalmente quando consideramos a sua própria infância. É muito provável que essa pessoa também tenha crescido em um ambiente sem essa problematização. Mas isso não é um círculo impossível de ser quebrado, todos nós podemos interrompê-lo a qualquer momento e não permitir que nossos filhos sejam mais um elo dessa cadeia.

“A criança aprende que consumir é bom e prazeroso, principalmente quando há exemplo dos pais, a quem imita.

(…) A inserção da criança de dois a sete anos no mundo do consumismo é diretamente proporcional à qualidade e às configurações dos relacionamentos estabelecidos entre os pais e os filhos, de forma que há atitudes dos pais que podem estimular o consumo infantil e atitudes que podem desencorajá-lo. Nesse cenário, é absolutamente relevante considerar o sentimento da infância dos pais, ou seja, quais percepções e concepções de criança eles têm, como tratam a infância e como estabelecem as relações com os filhos. O ambiente familiar como lugar de transmissão é geralmente o primeiro grupo social no qual a criança se insere, e, nesse sentido, as percepções dos pais sobre o que é ser criança são indissociáveis dos relacionamentos estabelecidos com os filhos.

 (Tiago Bastos de Moura, Flávio Torrecilas Viana e Viviane Dias Loyola, em “Uma análise de concepções sobre a criança e a inserção da infância no consumismo”)

 Que até o próximo 12 de outubro, no intervalo de um ano, nós possamos refletir sobre o que de fato é importante estimular em pessoas que criam outras pessoas e sobre qual nosso papel, de fato, na formação de uma sociedade que realmente respeite a infância. Que possamos mudar hábitos e reivindicar o respeito à infância, como forma de melhorar as relações humanas.

Crianças não precisam de bonecas que fazem xixi e cocô. Crianças precisam de gente que as defenda sempre, o ano inteiro.

Ainda que, ao fazer isso, sejam chamadas de patrulheiras, chatas e radicais. Afinal de contas, foram sempre os patrulheiros chatos e radicais os que conseguiram mudar o que precisava ser mudado. Não os que não veem problema em comprar e vender a infância.

Deixo aqui, nesse pós dia das crianças, meu agradecimento a duas turmas que estão constantemente na luta por seus e nossos filhos: os coletivos Infância Livre de Consumismo e Bater em Criança é Covardia.

Obrigada por tudo, amigos e amigas.

Um grande abraço

*Ligia é mãe da Clara, mora em Florianópolis, estuda a violência no parto e escreve o blog Cientista Que Virou Mãe.


Tags:  consumismo Dia das Crianças educação educação infantil marketing

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Mariana Sá




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5 Comments

Oct 14, 2013

Maravilhoso!!! Obrigada!!!


Oct 14, 2013

Olá! Sempre gostei muito da proposta do blog. Acho mesmo que o consumismo está se entranhando de forma perniciosa em nós e, consequentemente, em nossos filhos. Precisamos mesmo abrir os olhos e buscar senso crítico…
Mas também não acredito em radicalismo… Acho que a tal iniciativa a que se refere o texto pode, SE BEM ORIENTADA, ser positiva sim! Não pode ser feita de forma isolada, sem a adesão de outros princípios. Por exemplo, estabelecer um valor coerente de mesada para a criança pode ensiná-la a lidar com o dinheiro. E dinheiro faz parte do nosso mundo! Não podemos criá-los fora dessa realidade. A grande maioria das medidas educativas, se bem acompanhada e pensada, tende a trazer bons resultados. Mas se aplicada isoladamente, sem muito diálogo, amor, acolhimento, senso crítico, eis o problema!
Não é inserir a criança no mundo do dinheiro, nem comprá-la, quando se dá uma mesada, ensina que tem que controlar gastos, e que quebra de regras bem esclarecidas e coerentes tem consequências… Aquilo não quer dizer, absolutamente que não é importante explicar e exemplificar a importãncia da alimentação equilibrada. O problema não será a atitude educativa em si, mas a falta de reportar aquilo aos valores humanísticos tão desejados!
Estou aqui, basicamente, para dizer que há que se ter cuidado com a forma como pessoas não acostumadas com uma abordagem crítica podem interpretar essa mensagem. Já pensou se acham que dar mesada é comprar os filhos e deixam de pensar no uso desse recurso de forma orientada para ensinar os filhos sobre educação financeira? Aqui o medo daquela criança que é isolada de coisas da vida e, quando cresce e tem contato, tende a usar os recursos da vida adulta sem bom senso para ser feliz…
Quero compreender que o texto critica a adoção de medidas educativas sem reflexão e o tal suporte dos valores humanísticos desejados para a formação de nossas crianças. Só não sei se isso ficou tão claro…
Um grande abraço de quem deseja contribuir,

Juliana Cal


    Oct 14, 2013

    Oi Juliana,
    Obrigada por seu comentário.
    Embora a gente tenha o maior dos cuidados, nunca será possível controlar as interpretações que as pessoas fazem daquilo que escrevemos porque cada um lê a partir de seu filtro individual.
    Então, de maneira geral, é com o bom senso mesmo que a gente conta.
    Concordo com você e acho que a mesada pode ser uma maneira muito bacana, se bem orientada, de ensinar as crianças a lidarem com dinheiro e com o que ele representa. Minha crítica não é isso. É, isso sim, uma crítica pontual à compra do bom comportamento, onde a criança sente no bolso e não reflete a respeito. Na verdade, se refere bem diretamente a uma tabela que anda rolando nas mídias sociais em que um pai dá exatamente esses valores que incluí no texto, além de outros, para os comportamentos dos filhos. Isso não ensina o que pretende ensinar. Ensina apenas que o prejuízo financeiro é o que precisa ser evitado, não o bom comportamento ou a noção de responsabilidade. Você chegou a encontrar por aí essa tabela? É algo realmente deprimente e em recebendo severas críticas.
    No mais, concordo com seu ponto de vista.
    Abraços,
    Ligia


Oct 14, 2013

Ligia, adorei seu texto. Já presenteei meus filhos nos Dia das Crianças. Este ano, tivemos uma experiência diferente e muito legal. Viemos conversando por um bom tempo sobre o os brinquedos que eles têm, brincam, gostam ou não. Viemos conversando sobre o bombardeio publicitário nos canais de programação infantil, sobre o que os amigos diziam que iam ganhar, sobre o ter e não ter. Eles mesmos, 5 e 7 anos, concluíram que eles têm brinquedos suficientes para brincar e que não precisavam de mais.
Então, fiz a pergunta: Como vocês querem comemorar o Dia das Crianças? Minha filha propôs que fizéssemos uma festa com os primos e avós. Festa, para ela, é qualquer encontro com gente querida, bolo e brincadeira. Acho que não tem forma melhor do que comemorar do que com gente especial presente! Topamos esta forma de comemoração num lanche à tarde e participamos de uma feira de troca de brinquedos pela manhã.
É incrível ver que ali o valor que a criança dá a cada brinquedo é afetivo e que ela mesma poder negociar tem um peso completamente diferente de negociações que ocorrem com os pais (como estas absurdas que você bem coloca no seu texto). Ainda assim, ouvi crianças dizendo: “vem na minha barraquinha ver o que eu estou vendendo”. Elas estavam trocando, às vezes doando, e a palavra venda imperava. Olha a força desta moeda!
Temos sim que continuar praticando o diálogo, a troca e mostrando que existem alternativas muito gostosas de brincadeiras e celebrações. Acho fantástico este espaço que encoraja e potencializa tantos pais e mães a assumir uma postura na contramão do consumismo. Pena que muita gente ainda ache que é radicalismo…


Oct 14, 2013

Minha filha só tem 2 anos, mas esse ano ao invéz de comorar presente, a levamos a uma feira de troca! Ela ainda é pequenininha, timida e tive que mediar muita coisa. Adorei ver a tentativa de interação dela, e adorei mais ainda o fato de que ela escolheu um brinquedo completamente diferente do esperado para uma menina, escolheu um boneco do monstros S.A. O que me mostrou que ela não estava agindo por influência de propagandas e marketing que se baseiam em padrões de comportamento, não procurou aquilo que dizem a ela ser aceitável ela escolher atravez de embalagens com fotos de meninas feitas especialmente para atrair esse publico, mas sim aquele brinquedo que a agradou, ela olhou e aquele briquedo a atraiu, não pela marca, não pelo filme, não pela cor, mas pelo ato de brincar em si! A luta è ardua e diária, foram dias de muita conversa, desde que ela chegou em casa da escolinha onde disseram a ela que o dia das crianças era de ganhar presente e ela muito feliz repetiu isso em casa, disse que no dia das crianças ela ganharia presentes. Ela ganhou realmente, presente da avó, madrinha, que ainda bem deram livros! Mas espero que tenha ganhado muito mais que isso, espero que esteja no caminho de aprender o valor das coisas, e não o preço…



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