Texto de Fernanda Carvalho*
O Gloob é um canal de TV a cabo infantil. Aqui em casa, desde que abriu, esse é o canal preferido. Tem alguns programas de produção brasileira, outros gringos que as crianças adoram, reprises de desenhos como She-Ra, He-Man, Caverna do Dragão… Enfim, é um canal legal.
Dito isso, uma coisa ficou gritante:
Já tem um tempo que vem rolando uma propaganda de uma loja virtual do canal, que vende produtos customizados tipo caneca, calendário etc.
Essa propaganda começou me incomodando por conta do diálogo travado entre dois meninos que estavam brincando.
Imagem daqui
Um deles dizia algo do tipo: “Se pudesse, seria um urso com foguetes preso nas costas.” Aí o outro diz, desqualificando: “Impossível!” Daí o menino inventa outra coisa mirabolante e o outro repete: “Impossível!” E a coisa segue até que o menino diz que seria um quebra cabeças de 60 peças (uma das coisas que vende na loja) e o outro finalmente faz uma cara de “agora podemos começar a conversar…”
Durante o comercial, esse menino fala oito palavras. Dessas, três são IMPOSSÍVEL e as outras cinco são para enfatizar a impossibilidade.
Fiquei incomodada porque essa impossibilidade era referente aos sonhos de uma criança.
Acredito que não se deva, nunca, cercear a imaginação de uma criança, por isso, acho perigoso um comercial como esse, que é veiculado em quase todo intervalo da programação.
O pior é que a coisa não para por aí.
O menino sonhador é um menino branco e o menino que é pessimista é um menino negro. Não sei se a essa altura preciso ressaltar que a negritude do menino é bem pasteurizada para a TV e ele chega quase a ser loiro.
Mas, continuando… nesse ponto, depois de ter passado a idéia de que não vale a pena sonhar o impossível, a impressão que dá é que o menino branco sonha alto e o menino negro sequer sabe sonhar.
A palavra sonho tem um significado muito especial, principalmente quando se fala de raça.
Martin Luther King fez o famoso discurso antirracismo que ficou conhecido como “Eu tenho um sonho”.
Esse comercial parece zombar da cara do Sr. King, dizendo:
“Ah, é? Você tem um sonho? Eu não ligo a mínima, você vai é terminar como um quebra cabeça: esquartejado em 60 peças.”
Não precisa ir muito longe para imaginar a mensagem que um menino negro da favela pode entender com essa última frase.
Ok, pode ser que ele não perceba nada, afinal, o comercial é todo bonitinho, nem é agressivo em relação ao consumismo e eu tenho certeza de que foi pensado nos mínimos detalhes para ser politicamente correto.
O menino negro foi escolhido a dedo, é lindo, com cabelos black power que chocariam qualquer horário nobre, nariz largo e lábios grandes.
Não há diferença de classe entre as duas crianças, que brincam sem conflitos na sala de estar da casa de uma delas.
Mas o problema está justamente aí. Na nossa cultura, o racismo é uma coisa tão complexa e arraigada que, mesmo se esforçando muito, a gente acaba cometendo sem perceber.
Pode até parecer exagero da minha parte, mas o inconsciente tem uma linguagem própria, ele tanto faz as coisas sem perceber quanto entende muito mais do que a gente imagina. Daí minha preocupação com a mensagem que pode ser tirada desse comercial.
*Fernanda usou um pseudônimo para não terminar em 60 pedaços
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