escola / 20 de dezembro de 2013

O Natal do arco-íris


Carolina Silva*

(Esse conto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência)

Em um dia qualquer do final de outubro um garoto de quatro anos encontra a mãe no jardim onde ela regava as plantas.
– Mamãe, já é Natal?
– Não meu filho. Estamos em outubro e o Natal é só em dezembro.
– Ah. Mas na escola já é natal.
– É? Por quê?
– Porque já montamos a árvore e já nevou.
– Nevou?
– Sim! Nevou em cima da árvore.

A mãe era daqueles modelos bem tradicionais de mães, que se encontram em qualquer canto. Aquelas que gostam de trazer questionamentos, e que vem no exercício da dúvida, uma possibilidade de cidadania.

 – O que é montar a árvore, meu filho? Como funciona isso, montar uma árvore?
– A gente pendurou bolas nela.
– Mas como ela é?
– É verde.
– Mas ela é uma árvore igual essa aqui do jardim ou daquelas que a gente compra no super mercado?
– Ela é de mentira.
– Não tem vida?
– Ela é de Natal.
– Árvores de Natal não tem vida?
– Não. Elas são de mentira.

Saíram os dois do jardim, depois de terem regado as plantas que tem vida. Varreram as sementes que caíram no chão, e celebram o auge da primavera calorenta dos trópicos. Ele distraiu com alguma coisa. Ela seguiu pensando se a neve falsa, feita para celebrar uma data que em tese fala de vida, havia sido confeccionada de espuma ou isopor, ambos elementos francamente poluentes e nocivos à saúde. Até que alguns dias depois:

– Mamãe, o Papai Noel vai nos trazer presentes.
– É mesmo? Quem é o Papai Noel?
– É aquele que traz presentes no Natal.
– Ah, Tá. Como ele é?
– Ele é aquele que tem roupa vermelha e barba branca!
– Ah, já sei! Aquele que veste um casaco bem peludo?
– Isso!
– E um gorro!
– Isso!
– Nossa, ele deve passar muito calor, com essa roupa né? Você não está com calor?
– Estou.
– Imagina esse moço com esse tanto de roupa nesse calor né? Será que ele mora aqui no nosso país, onde é calor nessa época do ano?
– Eu acho que ele mora no shopping.
– Eu também acho. Mas se ele quiser ficar à vontade pode tirar essas roupas calorentas né? Vai ser melhor, não vai?
– E ele é uma pessoa que trás presentes só no Natal.
– É mesmo? E você sabe porque?
– Não.
– Eu também não sei porque.

Era impressionante como, somente perguntando coisas para o filho, que não envolvessem as respostas mais adoradas pelos pais (como o famoso “porque sim”) ela própria ia identificando seu desgosto pessoal com uma celebração tão desconexa com a realidade. Da expressão alienada de um personagem – que era uma vez, passava uma mensagem de partilha e caridade. Pensava no que aconteceria se um dia o filho cruzasse o tal velhinho barbudo e quisesse ter com ele. Como seria mais normal, para o tipo de mãe que era, simplesmente dizer a verdade: inventaram isso aí meu filho, para a gente gastar dinheiro. A linda fábula por trás disso, é o oposto do que isso prega. Quer ter com Papai Noel, o São Nicolau? Ele deveria nos tocar a atender os desejos dos outros, dos menos privilegiados. O Papai Noel gostaria que a gente gastasse menos. Que não comesse animais hormonados e doentes na ceia. Que não desperdiçássemos recursos da natureza. Que cuidássemos da nossa saúde. Aposto que ele estaria em depressão se soubesse que sua cara é usada há mais de 50 anos para vender refrigerante que causa câncer. Se o Papai Noel ainda estivesse vivo, ele seria normal como eu e você, e se comportaria de acordo com a natureza da vida. Sem neve falsa, sem roupa falsa. Acho que ele também não moraria num shopping se existisse. Vamos embora – ela fantasiava – esse é um Papai Noel falso. Que não nos quer bem.

Mas como é difícil dizer a verdade não?
Eis que um dia depois, veio a neve.

– Nevou na escola.
– Sério filho? No meio da primavera nevou? Que estranho, porque aqui no Brasil, o país onde a gente mora, não neva.
– Mas era neve do Papai Noel. Era de mentira!
– Ah! Que legal! Teve uma neve de mentira?
– Teve!
– Você sabe onde tem neve de verdade?
– No país onde a tia Lili mora.
– Verdade.
– E lá na casa do Caillou.
– Isso mesmo. Eu não sei se o Caillou mora na França ou no Canadá. Mas acho que nesses dois países tem neve de verdade.
– Eu também acho.
– Aqui no Brasil não tem neve de verdade.
– Não tem. Só de mentira.
– Como a árvore né? Aquela de Natal. É uma árvore de mentira.
– É só de enfeite.
– Você quer brincar de bolinhas de sabão de verdade? Ou quer fazer chuva no quintal, com água de verdade? Está tão calor, uma chuvinha vai bem!

No esguicho do quintal era possível ver o arco-íris. Era ali, nas cores do espectro que a mãe encontrava algum alento para a barbárie da sociedade decadente, expressa pelo recém criado advento da ceia da árvore – financiada pela indústria de abate de aves natalinas, para alavancar as vendas dos cadáveres, para mais de uma refeição nas festas. Que época estranha aquela. Época de consumir por impulso porque alguém apelidou um dia da semana. Em nome de uma figura religiosa, extremamente importante e respeitada por pessoas no mundo todo! Como pode? Época de marcar celebrações insensíveis aos aspectos humanos, e regadas de processos compulsivos – por comida, por álcool, por presentes, por religião. Nada fazia sentido. Pensava como seriam os próximos anos, quando a consciência das crianças fosse aumentando para a pressão social de ser conivente ao Natal. De vivê-lo mesmo sem ser cristão. De celebrar um peru morto, mesmo sendo vegetariano. De cultuar a neve, mesmo vivendo nos trópicos. De engolir, ano, após ano, após ano, uma tradição tão distante. Uma sombra vaga do que um dia pode ter sido o natal.

As cores do arco-íris, indiscutíveis, imutáveis presentes nos raios de sol e reveladas pela água lhe fizeram pensar na beleza escondida daquela época. Em seu potencial verdadeiro de transformação. Aguardando assim como os raios de sol, para que a água o revele: o verdadeiro sentido de natal e fim de ano. Fim de ciclo.

Em um mundo de dúvidas, se acalmou com cada uma das possibilidades que as primeiras oferecem. De poder fazer diferente, de poder escolher novos signos. De poder dizer a verdade, se assim um dia lhe convier. Que sejam épocas de festas felizes, humanas. Cercadas dos elementos que nos regem de verdade, distantes das tradições alienantes. Que sejam coerentes com o propósito da vida. Acima de tudo, coerentes à quem somos, e à potência imaculada, merecedora de respeito e verdade, que nossos filhos são.

(*) Carolina Silva é o codinome de uma mãe inconformada com o que o mundo oferece nas prateleiras, nas vitrines e na tevê para as crianças, que escolheu não revelar sua identidade verdadeira para proteger seu filho da super exposição.

Imagem de Sandra Serra http://bit.ly/19SM2lO


Tags:  #publicidadeinfantil crianças e publicidade infância Natal natal sem consumismo Papai Noel rever o natal

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Mariana Sá




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