legislação / 4 de junho de 2014

O fim da publicidade infantil – há muito que se comemorar!

Texto de Anne Rammi*

No dia 04 de abril de 2014 o Conanda – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – publicou no diário oficial a resolução 163, que considera ABUSIVA  a publicidade dirigida para crianças.

Que ela era abusiva, isso a gente já sabia. Não há nenhuma justificativa ética ou moral que explique o advento da comunicação mercadológica para crianças. Finalmente, adequando-se à demanda da população (e ao óbvio, diga-se de passagem) um Conselho Nacional estabelece que publicidade para criança não presta.
Há muito que se comemorar!
 
Vou me reduzir a dizer que eu achei a resolução ótima!
Nem vou me alongar relembrando que a resolução do Conanda não proíbe ou prevê sanções para infratores, pois para tal já existe regulamentação vigente, tanto no Código de Defesa do Consumidor, artigo 37 que discorre longamente sobre a proibição da publicidade abusiva ou enganosa no primeiro parágrafo e cita claramente seu caráter abusivo quando direcionado à crianças no segundo, como também no Estatuto da Criança e do Adolescente, onde em quase todos os seus 267 artigos impera a máxima constituinte de que o bem estar da criança e do adolescente são prioridade absoluta. Nem preciso pontuar que a resolução 163 é apenas norma balizadora que faltava para que a sociedade do ponto de vista político e jurídico, tivesse ferramentas que sustentem a ABUSIVIDADE da propaganda direcionada à crianças. 
 
Vou somente reforçar existem muitas famílias satisfeitas com o texto, assim como eu, porque publicidade infantil é uma praga do nosso tempo!
 
Também não preciso registrar que outras resoluções de outros conselhos nacionais entraram em vigor rapidamente na nossa sociedade, colocando o Estado no seu lugar (o de assegurar nossos direitos e deveres) e fornecendo à nós, cidadãos, entre outras coisas o direito de ver e usufruir do justo e do correto, quando colocado em prática. Como é o caso da resolução 311 do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) que dispõe sobre os airbags e da resolução 380 do mesmo conselho que dispõe sobre os freios ABS, como equipamentos obrigatórios de segurança (à despeito do lobby da indústria automotiva que não ficou nada contente com a novidade). Ou ainda a resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo (à despeito da parcela homofóbica da população). Ou quem sabe a resolução 237 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), que dispõe sobre práticas de licenciamento ambiental em prol da preservação do meio ambiente (à despeito da cultura de degradação em que somos inseridos).
 
Vou me ater somente a dizer que fico feliz que os conselhos estejam aí para isso.
 
Mas existe, claro, quem não tenha gostado da resolução.
Eu poderia ficar aqui, discutindo a aflição das associações e corporações cujo lucro se baseia na exploração dos conteúdos infantis, tanto de forma explícita, brinquedos e produtos para crianças, como implícita, daqueles que usam os pequenos como público alvo e veículo na promoção comercial de seus produtos. Seria legal inclusive que eu citasse a nota pública da associação brasileira de anunciantes que além de contrariar a disposição constitucional de que os conselhos nacionais tem competência constitucional para elaborar normas quando afirmam que reconhecem somente o Poder Legislativo como foro legítimo para legislar sobre a publicidade infantil reiteram o apego à sua zona de conforto (e lucro) máximo: “ O CONAR, é o melhor – e mais eficiente – caminho para o controle de práticas abusivas em matéria de publicidade comercial”. 
 
Mas eu prefiro somente escrever que me parece óbvio que para quem trabalhou até agora na terra sem lei da publicidade infantil, resoluções como essa devem ser mesmo um incômodo. Que chato, eles vão ter que se adaptar. 
Seria mais do que interessante que eu registrasse que o CONAR não é um órgão do governo – apesar do nome pomposo: Conselho Nacional de Autorregulamentação – trata-se apenas de uma organização não governamental mantida pelos próprios anunciantes. Que é deveras ótima para reger conflitos entre empresas: experimente uma marca de telefonia fazer uma ofensa à concorrente, o Conar é o mais eficiente dos órgãos. Mas no que diz respeito às relações entre consumidores e anunciantes e em especial ao público hiper vulnerável – crianças e adolescentes – está provado que a supra referida ONG com nome de órgão do governo rege em favor de quem o mantém: anunciantes. Valeria lembrar também que o Conar não tem força de polícia e não aplica sanções.
 

Mas eu nem vou me enveredar por esse assunto, porque não é isso que me importa.

Lembrei que ao tratar da resolução 163 do Conanda, agora que a gente está falando da parcela de pessoas que não consegue dormir direito desde 04 de abril, eu não poderia esquecer daqueles que meteram os pés pelas mãos em atitudes desesperadas para não perder seu filão do mercado de público-alvo-vulnerável. Uma série de textos, publicações, protestos estranhos e comentários nas mídias sociais e outros veículos de comunicação tratam a resolução como um “exagero”, “meramente educativo”, e insistem que “não tem força de lei”.

Mas eu me limito somente a dizer que foi tarde que finalmente resolveram colocar na equação também os interesses das famílias e das crianças, e não só o do mercado. Já não era sem tempo!
Como vocês viram, não vou me alongar com questões técnicas, jurídicas, políticas e éticas. Prefiro me ater ao que me cabe: minha experiência de mãe. E só isso. Achei ótimo que essa selvageria comercial direcionada aos meus dois meninos está com os dias contados. Que vai chegar a hora que eu não vou ter que explicar que por mais que haja um personagem querido, aquele suquinho é uma bomba de açúcar que faz mal para a saúde. Que por mais que venha com brinquedo, aquele lanche não é comida de criança. Que por mais que haja uma criancinha feliz brincando com aquela pista, ela é uma bela porcaria, e que os carrinhos na realidade não voam. Que por ser do tal personagem a mochila é mais cara. Que por levar o nome de tal ídolo pop, aquele material escolar custa o triplo do preço e prejudica o orçamento doméstico da família inteira.
 
Vai chegar a hora que eu vou poder ir com meus filhos ao supermercado e não ter que interpretar os pedidos incessantes de “compra isso, compra aquilo” motivados pela publicidade dirigida à eles, como uma “oportunidade de educação”. Porque como boa mãe que sou, sei que não me faltarão oportunidades para educar meus filhos, vejam vocês, mesmo quando a publicidade infantil estiver extinta.
 
Vai chegar a hora que a música de tal grupo infantil, ouvida com carinho em nossa casa, não vai mais poder ser usada para vender coisas para eles. E nem o tal grupo vai poder fazer show patrocinado por mega-corporação imobiliária ou empresa de telefonia, no intuito de fidelizar mini-clientes. Eu fiquei bem satisfeita com isso.
Meus filhos vão viver num mundo sem publicidade infantil! Um mundo que anuncia para adultos, os portadores do cartão de crédito e da senha! Um mundo cheio de comunicação mercadológica da melhor espécie, aquela cujo o alvo tem discernimento! Ético! Um mundo que divide de fato comigo a responsabilidade de criar uma criança: com o estado, com a família, com a sociedade e sim, por que não com o anunciante! Um mundo que não os manipula para o consumo, não os usa como promotores de venda e olha especificamente para suas necessidades como crianças: afeto e proteção.
 
Portanto, repito: há muito que se comemorar!
(*) Anne é mãe de dois e especialista em nada. Artista plástica por formação, pinta, borda, canta e sapateia. Tudo mais ou menos. Divide sua experiência de mãe e curiosa dos assuntos que cercam a criação de filhos na internet desde que eles nasceram, com abordagem bem humorada e ranheta, como lhe é peculiar. É editora do Mamatraca, um portal de conteúdo materno independente. www.mamatraca.com.br
Nota da editora: empresas não podem mais dirigir publicidade (comunicação mercadológica) para criança. Para denunciar a publicidade, o personagem na embalagem, a ação educativa dentro de escolas, use o manual do Programa Prioridade Absoluta

Tags:  #publicidadeinfantil #publicidadeinfantilNÃO autorregulamentação CDC Código de Defesa do Consumidor Conanda ECA Estatuto da Criança e do Adolescente regulamentação

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Mariana Sá




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