Texto especial para o Milc por Patricia Leekninh Paione Grinfeld*
Era um sábado de sol e frio, com muitas crianças reunidas. Ao encontro de sua mãe, veio uma das meninas, 8 anos, feliz da vida, mostrando seus peitos – de bola de tênis! Ela se divertia com a brincadeira.
Dias depois, tive acesso às imagens que foram apresentadas e discutidas nos textos Sutiã com bojo, adultização da infância e por que nada muda e Sutiã e salto alto para quem precisa (e quem precisa?) aqui publicados. Junto ao mal estar, de ver uma menina sendo estrategicamente usada para venda de um produto em tese destinado ao público adolescente e adulto, fui tomada por lembranças gostosas de experimentar os sapatos, bolsas, sutiãs, maquiagens, bijuteria, absorvente, perfumes e até perucas de mulheres que fizeram parte da minha infância. Tudo tinha um pouco de magia, até porque não eram meus. Eu sabia disso. Existia uma diferença clara entre o universo infantil e o adulto.
Como a menina em 2014, nos anos 70 eu adorava colocar peitos de laranja e barrigas de almofada ou bexiga para depois minha grande amiga – hoje ginecologista – fazer meus nenês nascerem. A gente, entre tantas brincadeiras, às vezes brincava de ser adulta.
Minha experiência não tem nada de extraordinário. Toda menina deveria ter o direito de imaginar-se mulher crescida, como a menina dos peitos de bola de tênis. Toda menina deveria ter o direito de esperar a maturidade física e emocional para ter um sutiã seu. Oferecer-lhe um – ou muitos – inibe o brincar e promove a erotização precoce.
Para o psicanalista José Ottoni Outeiral, a inibição do brincar e a erotização precoce são maneiras de “des-inventar” a infância: “nós vivemos numa sociedade extremamente voltada ao consumo e que descobriu nas crianças um grande mercado consumidor que é capaz de influenciar inclusive o consumo dos pais. Como tornar uma criança uma grande consumidora? Atingindo um ponto fundamental da infância, que é o ‘brincar’. A sociedade, incluindo a escola, começa a ‘des-inventar’ o brincar. O importante é comprar o brinquedo. O prazer está em comprar o brinquedo. Comprado o brinquedo, há um tédio muito grande do qual só se escapa comprando um novo brinquedo”[1].
Quem compra um sutiã para criança, compra pelo prazer da compra e pelas projeções (de suas histórias) naquela criança. Um dia compra maquiagem, depois o sapato de salto, depois o sutiã, depois…
Quando o uso de cada uma dessas coisas acontece, mesmo que seja com a intenção de ser apenas um brinquedo (este é um dos apelos do mercado), ele entra no lugar da coisa em si e não da experiência ou da descoberta, presentes no brincar com as coisas da mãe, da tia, da irmã mais velha, da vizinha – tão essenciais para o desenvolvimento saudável; ele não distingue o que é do mundo adulto e do infantil, confundindo as ideias, fantasias e sensações da criança que ainda não é capaz de lidar com todas essas informações.
É por isso que diante desses abusos à infância é preciso de leis que protejam a criança daquilo que ela não dá conta de lidar e que abole e/ou antecipa etapas do seu desenvolvimento. Criança tem o direito de ser criança. Se a lei interna dos adultos não dá conta de respeitar esse direito – produzindo, vendendo ou comprando sutiã (e tantos outros absurdos) para criança – é preciso que outra lei dê conta disso. O que não podemos é deixar crianças sofrerem esse tipo de abuso com um apelo sexual adulto. Sutiã não é produto para entrar no guarda-roupa de quem ainda não começou a desenvolver as glândulas mamárias. Sutiã em criança precisa ser “roubado” do guarda-roupa de adolescente ou mulher adulta. Isso é transgressão necessária e saudável. Isso é coisa de criança. O resto, é resto.
[1] José Otonni Outeital, “Educar nos tempos de hoje”. In: Sexualidade começa na infância / Maria Cecília Pereira da Silva (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 33.
Nota da editora: Na Câmara de Deputados está em tramitação um PL para vedar a produção e venda de sapato com salto para criança. Leia a notícia e veja a ficha de tramitação. Descobrimos que no dia 2/7 ele foi encaminhado para a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) com Parecer da Relatora, Dep. Cida Borghetti (PROS-PR), pela aprovação. Uma boa seria dizer ao presidente da CSSF, Amauri Teixeira que interessa aos pais e às mães, mas especialmente às crianças, a aprovação deste PL. E se possível a elaboração de um PL análogo para o sutiã com bojo.
Imagens da web.
(*) Patrícia mora em São Paulo, é psicóloga e 2x mãe. Por acreditar que pequenas atitudes podem ser transformadoras, faz seu trabalho de formiguinha na vida e na profissão. É idealizadora do blog Ninguém cresce sozinho e nunca acreditou tanto na importância do trabalho do Milc quando, ao ler “Bruxa, Bruxa, venha à minha festa” para um grupo de crianças entre 2 e 8 anos, uma menina com 3 disse: “Olha a Barbie”, apontando para a Chapeuzinho Vermelho da história. www.ninguemcrescesozinho.com
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