publicidade infantil / 11 de agosto de 2014

Na moral, publicidade infantil não sustenta seus argumentos

Texto especial para o milc de Maria Clara Soares*

Ontem acompanhamos apreensivos e orgulhosos o programa Na Moral, na Rede Globo, que se dispunha a discutir sobre a recente regulamentação da publicidade infantil.

Apreensivos porque sabíamos que estávamos em um canal de mídia que através dos poderes da edição e simpatia declarada pela cultura da publicidade poderia nos colocar em situação desfavorável à equidade do debate. Orgulhosos porque éramos representadas por Ana Claudia Bessa e Isabella Henriques, dois nomes importantes da luta de 12 anos pelo fim da comunicação mercadológica dirigida para público vulnerável, as crianças.

Para nossa surpresa, mesmo contando com o poder carismático da personagem dos quadrinhos Mônica, representada pela pessoa de carne e osso, tão querida pelas audiências do país em um ambiente tipicamente favorável ao consumo desenfreado (a TV aberta), mais uma vez percebemos que quando se trata desse assunto muito pouco ou nada é apresentado de fato como argumento crível.

Muitos de nós, assistiam o programa inclusive na expectativa de entender o que tanto as pessoas que são contra a regulação da publicidade infantil teriam a falar à respeito. Eis a coleção de argumentos que pudemos ouvir da boca de seus articulistas:

“A turma da Mônica teria sido possível em um país com leis como essa? Não, em hipótese alguma. Desde que iniciou a turma da Mônica nos anos 60, começamos com a publicidade do Jotalhão e da Mônica com a Cica e aí foram 90 comerciais de televisão, que fez com que a Turma da Mônica fosse conhecida no Brasil inteiro e começou o licenciamento dos produtos da Turma da Mônica e o Gibi da Turma da Mônica em 70.”

Esse argumento só nos fez pensar que um produto comercial – um personagem criado com finalidade de propaganda – foi transformado em produto cultural, e hoje se aproveita da bandeira da “educação” para definir sua existência. Enquanto a própria empresa assume que depende da publicidade infantil para sobreviver, e de uma forma bem sólida, temos provas de que a publicidade infantil não favorece a criança, fica a reflexão de quem se beneficiou, desde a década de 60, com a falta de regulação da publicidade infantil. As crianças, ou as empresas? Uma boa pergunta seria, a cultura da infância teria sido possível num país com leis como essa? E a resposta: sim. Sem publicidade, nada de mal teria acontecido às crianças.

“Se cada problema que surgir o estado passar a caneta e criar uma lei para isso, daqui à pouco a gente vai basicamente ser obrigado a seguir uma série de leis que vão dizer como a gente vai educar nossas crianças. Eu acho que o papel do Estado e da escola também, servem de apoio à educação familiar.”

Coloca o pai convidado para o debate. E nós estamos de acordo, entendendo que as regulações de publicidade infantil nada mais são do que apoio para as famílias, frente à um mercado completamente sem balizas. Enquanto estranhamos a presença do estado – fazendo o que deve fazer, elaborando e cumprindo leis para o bem estar social – ignoramos o fato de quem dita as regras de “como devemos educar nossos filhos” hoje é o mercado. E essas regras favorecem os interessas únicos e exclusivos das indústrias, e não da sociedade. No mais, se o Estado não olha para “cada problema que surgir” e não desenvolve políticas coletivas para a resolução desses problemas, sabemos, estamos sós. A hipótese de que cada família deve decidir o que é melhor para o filho não está anulada pela presença do estado na fabricação de políticas sociais. Com o fim da publicidade infantil, as famílias podem continuar fazendo suas práticas de educação para o consumo, conforme suas ideologias. Não se pode entender que essa “liberdade” existe somente em uma terra sem lei.

“Hoje não temos creches para todas as crianças do Brasil, e muitas delas passam horas na frente da TV. E se não existir publicidade para criança não existirá horário infantil na televisão aberta (quase já não está existindo). Vocês acham que é bom que essas crianças assistam um programa feito para um adulto e não para elas?”

Em frente à problemática dada e comprovada da falta de espaços de educação e apoio para o cuidado de crianças da nossa sociedade devemos nos conformar com o fato de que A TV é responsável por cuidar dos nossos filhos? De acordo com a tese, deveríamos estar satisfeitos que “pelo menos” a publicidade infantil financia programas para crianças, assim estamos lidando dignamente com o problema de falta de creches?

{Lembrando ainda que dentro dessas poucas linhas, Mônica ainda comete um grave deslize: o de associar o fim do conteúdo infantil com o fim da publicidade para crianças. É sabido que o conteúdo infantil na TV aberta está acabando muito antes da publicidade, por outras questões, que visam novamente o lucro desse segmento de mercado e não estão nem de longe preocupados com “quem vai olhar as crianças que não estão na creche”. No mais, todos os países que regulam fortemente ou proíbem a publicidade infantil, oferecem em suas televisões abertas programas destinados às crianças. Os recursos para tais fins foram pensados, arquitetados sem que se use criança como público de publicidade.}

“O Vedacit (produto que leva o personagem infantil Cascão em sua comunicação publicitária) é um impermeabilizante de construção civil. Nosso personagem tem 50 anos de casa e graças à Deus sempre pudemos trabalhar com liberdade. O Cascão todo mundo sabe que não gosta de água e que não gosta de umidade, nada disso. A agência de publicidade criou uma super sinergia que nós gostamos muito: ele não está mostrando a embalagem, ele não está apontando a embalagem, mas ele está do lado da embalagem. A publicidade nesse caso é dirigida ao adulto, que conhece o Cascão há quatro décadas. Porque a criança não vai ao supermercado e pede um vedacit. Ela não vai na loja de brinquedos e pede um vedacit.”

Nesse caso, o mercado utilizando-se do falso discurso da liberdade de expressão, que sabemos, está associada à pessoas e não à comunicação publicitária, infere que não existe problema nenhum em se colocar personagens infantis em produtos para adultos. Inclusive os tóxicos. Contando que haja sinergia entre o personagem e a campanha, baseado no fato de que “a criança não se interessa por esse produto”. Pois bem. Ignoremos a incoerência de se colocar nas decisões de uma criança (!!!) a suposta segurança de uma campanha publicitária como essa, baseado em seu interesse por esse ou aquele produto. Veja uma lista de sugestões de licenciamento, baseados na sinergia entre produtos adultos e personagens infantis que dentro dessa lógica não causariam dano nenhum à nossa sociedade:

– Camisinha da Dora Aventureira (afinal, ela adora uma aventura, tem uma super sinergia);
– Veneno de Rato do Tom & Jerry (veja bem, nenhuma criança se interessa por veneno de rato);
– Explosivo para construção civil do Papa Léguas (contanto que não seja vendido na loja de brinquedos, não vemos problemas que um personagem infantil esteja estampado na sua publicidade);
– Cerveja de milho, do Visconde de Sabugosa (essa é impagável).

“À partir do momento que não pode ter uma embalagem com personagem infantil, ou uma embalagem colorida, para não chamar a atenção da criança não pode ter uma embalagem colorida de uma boneca.”

Nesse argumento o mercado acaba se valendo da indução ao pânico, em uma suposição binária, afim de colocar a sociedade distante do cerne da reflexão: uma questão ética, criança não é consumidor. Por mais que a norma do Conanda atribua o caráter abusivo (entre outras coisas) à linguagem infantil, excesso de cores e efeitos especiais, e abranja a mídia (entre outras coisas) das embalagens de produtos, o julgamento da abusividade de cada ítem AINDA VAI PASSAR POR UM PROCESSO LONGO DE AMADURECIMENTO.

E como isso funciona? À partir da resolução combinada com ECA, CDC e os textos da constituição, e mediante as denúncias dentro desse tempo de ajuste, o poder público, a sociedade e os demais envolvidos poderão julgar a suposta abusividade. Ou seja, pode ser que uma embalagem de boneca colorida não seja interpretada como publicidade abusiva pelos aplicadores das normas (poder judiciário). E pode ser que uma embalagem de suco de caixinha, um produto cheio de corantes e açúcar, sabidamente nocivo à saúde dos pequenos em desenvolvimento, tenha que se ajustar à norma para não usar a hipervulnerabilidade da infância como espaço de venda.

É preciso lucidez para entender de que se trata de um debate social e político, além de jurídico e moral. E não uma norma proibitiva inventada sem nenhum embasamento, como querem fazer parecer os articulistas contra a sua divulgação para a sociedade.

“O negócio é muito subjetivo. À partir do momento que é muito subjetivo e está sujeito à interpretações, essas interpretações vão ficar na mão de terceiros e eles é que vão dizer se aquilo é acessível para meu filho ou não.”

Ressalta Marcel Dias, o pai blogueiro convidado para debater pelo lado do mercado. Ironicamente, ele usa então a subjetividade da interpretação como argumento contra a resolução. Nos faz lembrar um pouco daqueles que dizem frente à qualquer dilema social: é muito complicado, o buraco é mais embaixo, você não vai entender. E exclui convenientemente os “menos entendidos” da conversa. Pois bem: acreditamos que todos tem direito às informações e opiniões próprias sobre o tema. Mas gostaríamos de ressaltar que atualmente os produtos que estão acessíveis à nossos filhos estão INTEIRAMENTE nas mãos de terceiros. E esses terceiros fazem parte da indústria, que fabrica, vende e anuncia esses produtos. Sem nenhuma participação do governo, em forma de leis ou normas, e sem nenhuma participação da sociedade. Afinal de contas, quando é que fomos consultados se achamos necessário, se queremos, se aprovamos que sub-produtos do abate animal – como salsichas e nuggets, sabidamente produzidos com os restos industriais da indústria frigorífica, como veias, sangue e peles dos bichos – sejam licenciados com figuras infantis e oferecidos para as famílias com a publicidade enganosa de “produto saudável”? Nunca fomos perguntados. A resolução vem também como convite de nos colocar, sociedade, no debate.

“Eu tenho medo que essa resolução faça com que deixe de existir o produto para criança. Porque a infância já está achatando. A gente vê isso até através dos nossos gibis, porque antigamente ia até doze anos, hoje a criança está lendo até menos idade do que isso. Então eu acredito que se você começar a boicotar esse tipo de indústria que faz o produto dela para criança, vamos supor, nós temos o Nissin da Turma da Mônica, ele tem muito menos sódio do que para o adulto, então por que a gente vai tirar esse produto do mercado?”

Nossa resposta real para esse questionamento seria: quem em sã consciência está preocupado com o fim do miojo? Um produto sabidamente nocivo que nem deveria existir como alimento para adultos, o que dirá para crianças. Mas considerando a preocupação ~supostamente~ real da indústria, de que os “produtos para crianças vão acabar” (e lembrando a conotação apocalíptica dos argumentos) nos permitimos uma reflexão atemporal em duas frentes: primeiro, do porque raios estamos assumindo que produtos ruins, como no caso dos alimentícios citados, de baixo valor nutricional são “produtos para crianças” e em segundo lugar qual é o papel dos licenciamentos nessa ótica? Quer dizer que somente porque existe um personagem infantil atrelado àquele produto é que é possível melhorar sua qualidade nutricional? Se o argumento que fala da “incompetência” dos pais para criar seus filhos serve para culpar o estado pelas suas políticas públicas, deveria servir aqui também: pais e consumidores incompetentes para exigir do mercado produtos de qualidade, aceitam que os licenciados façam essa “melhora de qualidade” por eles. E sabemos, não há qualidade nutricional da vasta maioria de produtos alimentícios licenciados para a infância.

Nesse mesmo argumento, o fenômeno do “achatamento da infância” pode ser resolvido com mais e mais oferta de produtos para crianças? É a mesma lógica da publicidade na TV, versus falta de creches. A infância está acabando: vamos impedir que os “produtos para crianças” acabem, resolvido. Não tem escola para todo mundo, vamos deixar a publicidade cuidar de quem não é atendido pelo governo, resolvido. Na moral, não tem senso.

(*) Maria Clara é mãe de dois meninos, publicitária da terra da garoa e acompanha assiduamente os textos do Milc.


Tags:  Conanda debate na moral resolução 163

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Mariana Sá




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