publicidade infantil / 8 de outubro de 2014

Mídia vende tudo

Texto de Renata Mielli anteriormente publicado no site Barão de Itararé*

Comprar é o verbo que sustenta o sistema capitalista. Até mais do que vender. Nascemos, crescemos e morremos voltados para o consumo. Não compramos apenas o que é necessário, a estratégia de consumo foca na produção de necessidades, tarefa que cabe à publicidade, particularmente a que é veiculada nos meios de comunicação de massa. Discutir regras para esta atividade estritamente comercial é fundamental para evitar desvios na própria função que deveriam ter a televisão e o rádio.

Por Renata Mielli, para a série especial do Barão de Itararé*

“A publicidade tem um impacto profundo na formação da subjetividade, da cultura, e na formação dos desejos, por isso precisa ser regulada. Você compra por causa da promessa de felicidade ou de identidade que aquele produto traz, porque determinada marca agrega um valor. Todo produto com impacto social deveria ter responsabilidade social, e este é o caso da publicidade”, avalia a psicóloga e pesquisadora de mídia Rachel Moreno, que, ao lado de outros profissionais, participou da organização TVer e da Campanha quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania.

O professor de jornalismo da Escola de Comunicação e Artes da USP, Laurindo Lalo Leal Filho, lembra que no Brasill “a radiodifusão se constituiu como um grande negócio comercial. Ela é parte de um dos elementos estruturais do capitalismo: a comercialização de produtos e serviços. Por isso, restringir a publicidade no rádio e na TV é atacar um dos pilares de sustentação do sistema capitalista, já que radiodifusão é o meio mais eficiente para se construir necessidades de consumo. Daí a resistência dos setores econômicos em torno desta regulação”. Mas, alerta Lalo, “se não forem estabelecidas regras para a veiculação de publicidade nestes meios, com limites legais de tempo de exibição, corre-se o risco de se transformar um serviço público num simples instrumentos de vendas de bens e serviços. Ou seja, se não houver regulação de publicidade pode haver uma distorção do sentido de existência destes serviços, que estão definidos na Constituição como de finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.

Gôndola eletrônica

Limitar o tempo de exposição de publicidade na radiodifusão em 25% do total da grade de programação é uma determinação legal desde 1962 (Artigo 124 da Lei n 4.117/62). Porém, basta uma zapeada pelos canais de TV ou uma caminhada no dial do rádio para perceber que esta é uma regra completamente ignorada pelos concessionários dos serviços de radiodifusão. A publicidade está no intervalo comercial, na chamada do telejornal, no interior da programação como patrocínio ou merchandising, prática, inclusive, proibida pelo Código de Defesa do Consumidor. “A publicidade deve ser facilmente identificada como tal e o merchandising entra de maneira quase imperceptível, sutil. Por isso é proibido”, explica Lalo.

Há, também, as emissoras que são completamente ocupadas pela comercialização de produtos e serviços, vendendo utilidades domésticas, medicamentos, joias, gado… cada canal ou horário uma especialidade em vendas, ao gosto do “cliente”. Neste caso, além de superar o tempo máximo para exibição de publicidade, existe outra irregularidade nestes canais: estes “infomerciais” são geralmente resultado ou da sublocação de horários da programação da emissora, ou são concessões transferidas irregularmente.

Caso recente envolvendo a concessão da Abril Radiodifusão ilustra bem esse tipo de irregularidade. O canal de televisão que transmitia a MTV Brasil (32 UHF em São Paulo) foi vendido pela Editora Abril em dezembro de 2013 para o Grupo Spring, do empresário José Roberto Maluf (ex-executivo do SBT e da Rede Bandeirantes), por R$ 290 milhões. Mas no canal, atualmente, quem domina a programação é o Bispo Valdemiro, da Igreja Mundial, e leilões de gado.

Em março deste ano, uma decisão importante para enfrentar o descumprimento das regras de veiculação de publicidade na radiodifusão foi tomada pela Justiça Federal de São Paulo. Juiz da 7ª Vara Cível julgou procedente ação proposta, em 2007, pelo Coletivo Intervozes contra Shop Tour, Mix TV e outros canais por “transmitem conteúdo exclusivamente ou majoritariamente comercial, conduta que contrasta com a finalidade educativa e cultural dos serviços de radiodifusão”.

Segundo o despacho, “a simples análise das informações constantes na página da SHOPTOUR TV na internet evidencia que sua atividade é focada integralmente na promoção de marcas, produtos e serviços, com a finalidade de facilitar as relações de compra e venda com os consumidores, sem qualquer compromisso educativo, cultural ou informativo”. E conclui que “a prestação dos serviços desrespeitou princípios expressos que regem a radiodifusão, com evidente prejuízo à coletividade, que teve prejudicado durante anos o direito de acesso à informação”. Em face disso, determinou-se uma multa pecuniária contra as emissoras e determinação de que a grade de programação fosse alterada para se adequar à legislação em no máximo 60 dias, sob pena de as empresas terem a concessão do serviço de radiodifusão cassada. Sessenta dias já se passaram, as empresas entraram com recurso e o processo continua em andamento.

Fábrica de desejos e desigualdades

Fiscalizar o tempo destinado à publicidade é importante, mas ficar de olhos bem abertos para o conteúdo também é papel do Estado e, principalmente, da sociedade, no sentido de evitar abusos e ilegalidades.

A Constituição Federal, por exemplo, prevê restrições para a publicidade de tabaco, agrotóxicos, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e outros produtos e práticas que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. O Código de Defesa do Consumidor proíbe expressamente toda publicidade enganosa e abusiva.

Para o advogado do Instituto Alana, Pedro Hartung, a publicidade é uma prática comercial “que se utiliza dos meios de comunicação para ser efetivada e, por isso, deve ser regulada”. Ao seu ver, o argumento de que regular o conteúdo publicitário é censura ou cerceamento da liberdade de expressão não faz sentido. “Há uma distinção importante que tira um pouco o foco desse debate de censura e liberdade de expressão. Publicidade não é a mesma coisa que a manifestação de um pensamento, de uma ideia, de uma posição política, religiosa. Publicidade é um ato comercial e, como tal, pode ser regulado. Então esse debate da censura é equivocado para falar de publicidade”, avalia.

Essa é uma posição partilha pelo professor Lalo. “Publicidade é intrínseca à mercadoria, ao produto. É um análogo ao rótulo, à caixa, à embalagem. A publicidade é um desdobramento do rótulo. O único objetivo da publicidade é estabelecer uma relação de compra e venda, não existindo alternativa, contraditório, como por exemplo na informação. Por isso, não se pode comparar a publicidade e a informação jornalística, pois não há paridade entra elas. A publicidade é para persuadir o cidadão a comprar, é parte do produto e como tal pode sofrer restrições que de maneira nenhuma implicam em censura ou cerceamento à liberdade de expressão”.

Não mexam com o meu bolso

Ação do movimento negro proibiu propaganda preconceituosaAção do movimento negro proibiu propaganda preconceituosa“No Brasil temos o termo liberdade de expressão comercial, uma coisa meio esquisita”, ironiza Rachel Moreno ao citar um dos pilares da argumentação dos setores econômicos que se colocam contrários ao debate da regulação da publicidade: anunciantes, agências de publicidade e meios de comunicação.

A publicidade, no Brasil, é uma atividade que utiliza o modelo da autorregulamentação, ou seja, os próprios pares são os responsáveis pela regulação do setor, que cabe ao Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária, o Conar.

Além de argumentarem que regulação de publicidade por parte do Estado é censura, e que o Conar é suficiente para resolver eventuais problemas, os publicitários tentam desqualificar as críticas mais comuns ao conteúdo de publicidades, principalmente as que exploram a imagem da mulher de forma sexista, as que reforçam preconceitos e, inclusive, as direcionadas ao publico infantil. Isso fica claro na última campanha institucional do órgão, ironizando as restrições à publicidade infantil no vídeo “Palhaço” ou a luta contra a discriminação de negros e mulheres, no vídeo “Feijoada”.

Regulação é garantir direitos

Ao longo dos últimos 20 anos, a iniciativa de organizações e movimentos sociais em torno de temas ligados aos direitos humanos, da criança e adolescente, da democratização da comunicação, dentre outras, têm conseguido pautar o debate público sobre a necessidade de o Estado assumir maior responsabilidade na discussão da regulamentação da publicidade.

Isso ocorre com a publicidade de medicamentos, tabaco e bebidas alcoólicas, em que há alertas para os problemas de saúde decorrentes de seus usos ou restrição horária para a sua veiculação. Mas Rachel Moreno questiona: “Será que é suficiente dizer ao final do comercial de uma bebida alcoólica ‘beba com moderação’? Vemos que as pessoas estão consumindo bebidas alcoólicas cada vez mais jovens”.

Mas talvez o mais importante debate sobre regulação de publicidade envolva a discussão dos direitos das crianças e do adolescentes. Além de a Constituição prever a proteção da infância, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e outras legislações incorporaram elementos fundamentais de regulação da publicidade dirigida à infância.

A partir de estudos acadêmicos no campo da Psicologia, Sociologia, Economia e várias outras áreas e com a ação de várias organizações, “que envolve a maioria dos estudiosos do desenvolvimento infantil, do direito infantil, do direito da criança e do consumidor foi se construindo um consenso de que dirigir publicidade ao público infantil é abusivo e, no mínimo, anti-ético”, explicou Hartung.

Pedro Hartung, que atua no Instituto Alana, conta que a entidade criou, em 2005, o Projeto Criança e Consumo, para discutir as relações da criança com o universo do consumo e o tema da publicidade infantil, “que surgem como vetores de problemas e de violação de direitos”, diz.

“A publicidade dirigida ao público infantil se utiliza da vulnerabilidade da criança para a venda de determinado produto ou serviço. Isso tem como consequência o agravamento de problemas sociais como a obesidade infantil, a erotização precoce, diminuição das brincadeiras criativas. Obviamente a publicidade não é a única variável, mas ela está associada às outras variáveis, afirma o advogado do Alana. Para mostrar como a publicidade influencia negativamente a criança, vale assistir ao documentário Criança, a alma do negócio.

Outro fator de preocupação para a proteção das crianças e adolescentes é a influência da publicidade de alimentos com altos teores de sais, açúcares e gorduras para o aumento das taxas de obesidade. “Temos 15% da população infantil obesa e 30% com sobrepeso”, exemplifica Hartung. O tema é tratado em outro documentário produzido pelo Alana, Muito Além do Peso.

Rachel Moreno conta uma dentre as muitas histórias que ela teve contato, de um guarda municipal que flagrou uma criança roubando um Toddynho. “Ele a levou para uma destas casas, financiadas pelo Criança Esperança, para não levar o menino preso. Ele conta que disse para a criança –você ia preso só por causa de um Toddynho, veja o que vc está fazendo menino? Ao que o menino respondeu: – Eu só queria saber que gosto tinha”. Para a psicóloga, principalmente as crianças devem ser merecedoras de cuidado e respeito. “Uma criança demora a descobrir o que é real e o que é fantasia. Você pode mostrar um super homem no comercial, mas tem que deixar claro que ele não voa. Também existe a erotização precoce, a obesidade infantil, ou de outro lado a bulimia e anorexia, porque as meninas querem ser magras como as modelos nos comerciais”, salienta a psicóloga Rachel Moreno.

Para tentar barrar este tipo de publicidade, em março deste ano, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda – editou a resolução 163  , que proíbe a publicidade dirigida ao público infantil. A medida despertou a crítica de anunciantes e publicitários, sendo tachada de censura e afirmando que o Conanda não têm competência jurídica para dispor sobre o tema.

Pedro Hartung, que representa o Alana no Conanda, explica que o Conselho “foi criado por uma lei para cuidar da diretriz constitucional de controle do sistema de garantias e de proteção para as crianças e adolescentes. Ele tem a competência de editar normas gerais e fiscalizar a aplicação do ECA, logo ele tem a competência de editar resoluções para que o sistema de garantias funcione. Antes da resolução 163 houve outras cento e sessenta e duas ligadas a outros temas. Esta resolução apenas consolida o que já está na legislação.Há tanto uma legitimidade social quanto uma legitimidade normativa da competência do Conanda”.

A resolução, no entanto, não proíbe a publicidade de nenhum produto ou serviço, como esclarece Hartung. “A questão é o direcionamento da publicidade. O produto vai continuar tendo sua publicidade realizada, mas de outra forma, direcionada para o público adulto, para os pais, que são os responsáveis por fazer a mediação dessa complexa relação de consumo, que mexe com itens abstratos como o valor, o dinheiro, a persuasão. Os pais tem um papel indispensável nisso. Mas o Estado, por também ser um zelador dos direitos das crianças e dos adolescentes, tem o seu dever de equilibrar esse jogo de poder, que é desigual, entre a família e o anunciante. São altos os investimentos para conseguir uma publicidade ideal, capaz de persuadir a criança para o desejo de consumo direto ou para que ela seja uma verdadeira promotora de vendas dentro da sua família. Hoje já se sabe que mais de 80% de todo o consumo de uma família é influenciado pela criança. Comida, carro, o vestido da mãe, a criança tem esse poder de influência e as empresas as transformam em promotoras de vendas”.

Quem financia a baixaria….

A regulamentação de publicidade nos meios de comunicação é outro tema obstruído por agentes econômicos, pela mídia e que não figura nos embates políticos, particularmente nos eleitorais.

“Os meios de comunicação não abrem espaço para este tipo de debate porque eles são mantidos pela publicidade e não há interesse em entrar em atrito com aqueles que os matem. Inclusive, porque alguma empresas de comunicação têm interesses diretos em atividades comerciais. Não há isenção para tratar destes assuntos. Temos o exemplo da Bandeirantes. A família Saad possui um concessão de televisão, mas eles atuam fortemente no ramo do agronegócio e da pecuária. Eles tem até o canal do Boi. E inclusive acabam usando a sua concessão de televisão para atacar os setores sociais que discutem esses temas, como por exemplo o MST. Ou seja, são pecuaristas e também atuam na atividade da comunicação”, denuncia Laurindo Lalo Leal Filho.

Ele lembra, ainda, que este tema não habita o debate eleitoral “porque a mesma relação de interesse que existe entre as emissoras e a publicidade, também existe entre os candidatos e partidos, empresas e mídia. Não interessa entrar em choque com grupos econômicos (grandes anunciantes).

Rachel Moreno relaciona a ausência deste debate a outra tema crucial para a democratização da sociedade: a Reforma Política. “Nós estamos nas ruas com uma campanha por uma Reforma Política que defende o financiamento público das campanhas eleitorais. Hoje o financiamento é privado, feito majoritariamente por empresas. E, quem se eleger, se sente devedor, ou seja, na obrigação de defender os interesses da empresa que financiou sua campanha, isso inibe os políticos que ficam reféns desse sistema”.

Por isso, Lalo insiste que o importante “é não perder a visão de conjunto, que é a necessidade de se discutir um novo marco regulatório das comunicações. Vivemos uma situação na qual os governos são quase que reféns da mídia. Há um desconhecimento de como funcionam essas empresas, falta de clareza que acaba virando uma subordinação, mesclada com um certo deslumbramento, com o glamour de aparecer na TV”, lamenta.

(*) Texto de Renata Mielli anteriormente publicado no site Barão de Itararé em 7/8/2014

 


Tags:  legislação marketing mercado proteção à infância televisão

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Mariana Sá




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