Texto especial para o Milc de Natalia Casanova*
O caso da “musa fitness infantil” chocou o Brasil ontem. Como nutricionista, claro que não demorou a piscar uma notificação com um print screen do polêmico Instagram no meu celular. Mas dessa história toda, o que mais me preocupou foi mesmo a reação que causou nas pessoas. Acompanhei comentários feitos em vários grupos e sites de notícias. Muitas pessoas se chocaram. Muitas levantam a bandeira de que é melhor ser “musa fitness infantil” do que ser uma criança obesa. Nesse caso, o que deve ficar claro é que não existem apenas essas duas opções na vida de uma menina, e que ambas as situações são extremos, em que a saúde física e mental está em risco.
E há ainda outros que culpam perversamente a menina, lançando comentários do tipo “mas ela bem que está gostando”. Claro que ela está gostando, ela é uma apenas uma criança. Mas o fato de gostar dos seus cinco minutos de fama não a torna culpada pela situação em que foi colocada, e muito menos significa que ela tenha capacidade de entender o que pode estar por trás do seu caso. Ela não chegou a essa situação sozinha. Não acredito que uma menina comum de nove anos seja capaz de angariar 20k seguidores no Instagram, e ter um e-mail para contato profissional sozinha. Tem alguém explorando essa situação, e se você se incomodou com isso, é esse alguém que deve ser tomado como culpado, e não a criança!
Crianças são mais vulneráveis, pois não tem maturidade neurológica para discernir entre o que é bom e o que pode trazer malefícios à sua saúde, sendo pouco capazes de tomar decisões autônomas no que se refere à sua dieta. De acordo com pesquisas científicas, a completa capacidade de tomar decisões de forma autônoma só ocorre por volta dos 18 anos, quando o cérebro atinge maturidade biológica. Esta maturidade pode ser evidenciada, por exemplo, por ressonância magnética nas pesquisas. Antes disso, as crianças são inocentes, no sentido de que tem dificuldade de entender diferenças entre comerciais de TV e a programação, por exemplo.
Da mesma forma que não tem ainda capacidade neurológica de entender a diferença entre um corpo bonito conquistado com saúde e um corpo bonito que precisou arriscar ou mesmo prejudicar a saúde da pessoa que o ostenta. Por isso crianças são tão vulneráveis ao marketing de alimentos que potencialmente levam à obesidade, como fast food, ao passo que também são vulneráveis a toda essa divulgação esmagadora de “alimentação saudável” e atividade física praticada em níveis que muitas vezes ultrapassam o saudável.
Ou seja, crianças são mais vulneráveis a adquirirem hábitos alimentares (certos ou errados) do que adultos, por isso dizemos que nesta fase são formados os hábitos. Da mesma forma que não queremos nossas crianças expostas a cigarro, drogas e violência, também devemos afastá-las da pressão de ostentar um corpo “perfeito”. É importante colocar entre aspas esse adjetivo para que fique claro que às vezes a única coisa perfeita nestes corpos é mesmo a aparência, pois bioquímica e fisiologicamente eles podem estar comprometidos.
Como nutricionista, não sou habilitada a prescrever atividades físicas, e não tenho capacidade técnica para julgar se é saudável ou não uma criança de nove anos praticar musculação. Até onde sei, ainda é um assunto controverso entre os profissionais do ramo. Em relação à alimentação infantil, sou a favor de que ela seja a mais saudável possível. Não vejo problema algum em não oferecer aos seus filhos alimentos que realmente não precisam fazer parte da dieta, que possuem o que chamamos de “calorias vazias” – as calorias que não agregam nenhum valor nutricional (vitaminas, minerais, fibras, compostos bioativos) à alimentação, além das próprias calorias.
Como citei antes, nesta fase são formados os hábitos de vida do indivíduo. Então é crucial ofertar sempre alimentos saudáveis, e evitar a oferta de alimentos que podem prejudicar a saúde. Meus pais nunca me deram um copo de refrigerante, mas nunca me proibiram de experimentar. Claro que eu provei, até porque na época em que eu era criança era comum não ter água nas festinhas dos colegas! Muitas vezes tinha só refrigerante para as crianças – felizmente acho que essa cultura mudou. Mas o fato é que eu provei, por livre e espontânea vontade, e não gostei. E não quis mais, até hoje. Por livre e espontânea vontade.
Minha família sempre me mostrou o que fazia bem, e sempre me explicou porque outros alimentos faziam mal. E mais importante que isso, sempre me incentivou a caminhar com meus próprios pés, sempre me delegou o poder de decisão embasada. Nunca me deixaram apenas com o “é assim porque é assim”. Isso é o que hoje chamamos de empoderamento. O que deve ficar claro nisso é que não se deve criar um “terror psicológico” em torno de alimentos não saudáveis. E infelizmente esse terror psicológico tem acontecido frequentemente, não apenas com crianças, mas também com adultos!
Quem nunca ouviu falar da blogueira fitness que recomenda que seus seguidores coloquem chocolate na boca e cuspam em seguida? Isso não é manter uma relação saudável e equilibrada com a sua alimentação. Isso não é o pilar da nutrição. Isso é uma porta aberta a distúrbios alimentares e de imagem.
Os transtornos alimentares podem ser mais comuns do que imaginamos entre crianças e adolescentes. Pesquisas realizadas no Brasil evidenciam que nessa faixa etária, as meninas já priorizam um ideal de corpo magro imposto pela sociedade. Já é sabido que tais distúrbios são de certa forma frequentes em crianças, principalmente meninas, que praticam atividade física a nível competitivo (atletas) de modalidades em que a imagem é crucial para o desempenho e para a vitória, como nado sincronizado, ginástica rítmica e balé.
Será que vamos ficar parados assistindo uma nova modalidade esportiva associada a um potencial para distúrbios de imagem se popularizar entre as crianças?
(*) Natalia é nutricionista, natural do Rio de Janeiro, pós graduanda em nutrição esportiva e mestranda. Não tem filhos ainda, mas foi agraciada há dois anos com um afilhado lindo, que veio ao mundo através de pais muito conscientes. Sempre ficou profundamente abalada com a exposição de crianças ao excesso de marketing e consumismo, e hoje que começa a entender o processo sob uma ótica biológica também, fica ainda mais incomodada. Acredita que falta chegar às pessoas comuns informações sérias, porém de forma leve e fácil de compreender, sobre os riscos a que estamos expondo nossas crianças se não exigirmos regulação da propaganda voltada a esse público..
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