Texto especial para o Milc de Vanessa Anacleto*
Outro dia, minha vizinha me abordou na porta de casa. Ela e a filha adolescente discutiam ao sair de casa para uma festa e a menina demorou muito a se arrumar dada a quantidade de acessórios.
– Vizinha, ainda bem que o seu é menino.
– Por quê?
– É mais simplificado.
Dito isso cada uma foi viver o seu dia e fiquei pensando:
Isso significa que menina é complicada?
A mulher adulta já possui o rótulo de ser complicada. A mulher, segundo dizem, precisa de muito mais para viver, consome mais e, consequentemente, é mais assediada para o consumo. Poder-se-ia também dizer que a mulher é mais assediada para o consumo e por isso consome mais, necessitando de muito mais para viver. Mas será mesmo? Será mesmo que a mulher é complicada, será por isso que consome mais e ‘custa’ mais caro? Para pensar.
Mas, quando isso tudo começa? Será que já na infância o apelo ao consumo direcionado às meninas é maior? Para obter esta resposta, basta assistir a uma sequência de filmes publicitários infantis veiculados abusivamente nos canais infantis todos os dias. Aproximadamente para cada cinco produtos anunciados, quatro são direcionados para meninas e um para meninos. E enquanto os meninos são exortados pela propaganda à uma vida de aventuras (de herói, carros, bicicleta, avião ), as meninas brincam –precocemente – com maquiagem utilidades para o lar, roupas e acessórios, que quase desbancam as tradicionais bonecas. Aliás de tradicionais as bonecas não têm quase nada. Elas não são mais as filhas das meninas, mas reproduções de adolescentes ou mulheres adultas, com corpo e estilo de vida de mulher adulta. É a menina sendo programada para consumir mais e mais no futuro. Brincar? Bem, esta não é exatamente a proposta do brinquedo.
O que é complicado, então, a menina ou seu entorno?
Do que a menina precisa: brincar ou ser colocada precocemente na fase adolescente pela indústria ávida em formar consumidoras convencidas de que precisam de muitos detalhes para comporem sua identidade feminina? Conheço meninas descomplicadas. Elas existem e gostam de ler, desenhar, patinar, brincar com jogos e brinquedos de armar, ninam bonecas e pulam corda. As meninas sobem em árvore, andam de bicicleta do mesmo jeito que usam o colar de pérolas da mãe.
Não deixemos que nossas meninas cresçam achando que estão em dívida com o resto do mundo por terem nascido com dois cromossomos x. Ser mãe de menina é tão complicado e caro quanto ser mãe de menino. A complicação e o preço alto brotam do substantivo mãe, não do adjunto adnominal menina . Encerrados no termo mãe, vivem dúvidas, incertezas, temores e alegrias profundas. Nunca sabemos se o que fizemos era o melhor, era o certo. Sempre tememos o erro fatal que nos custe arrependimento e sensação de fracasso na única coisa que não nos imaginamos fracassando. Ser mãe é delicioso e enriquecedor assim como é dolorido. A dor da vida vivida sem medo nos aperta o peito todos os dias junto com a felicidade de poder testemunhar também todos os dias aquele sorriso e viver aquele abraço de filho e de filha que é o melhor de todos. Descomplicado e bom.
Imagem The Guardian
(*) Vanessa é mãe de menino, escritora, blogueira e co-fundadora do Milc.