destaque_home / publicidade de alimentos / 30 de julho de 2015

Cereal matinal e publicidade ilegal

Texto especial para o Milc de Anne Rammi*

Estamos vendo na blogsfera materna uma quantidade sem fim de posts pagos por indústrias, muitas vezes oferecendo produtos duvidosos à saúde de mães e crianças. De modo que nos últimos meses abrimos as portas de um mundo desconhecido, quando resolvemos enquanto coletivo de lactivistas* e mães chatas da publicidade infantil observar a qualidade das informações disponíveis para pais de crianças pequenas.

PAUSA
{Monetizar o conteúdo do blog é escolha de cada blogueira, assim como divulgar porcaria em forma de brinde. Ainda que eu ache essa prática muito complicada dentro do universo materno/infantil, ganhar dinheiro com o conteúdo de blog está fora do meu questionamento. Não é disso que estou falando.}
DESPAUSA

Esquecendo o que cada blogueira materna faz individualmente com a foto do filho, prefiro fazer uma volta ampla em torno da publicidade dentro de blog materno e, no meu lugar de lactivista e chata da publicidade infantil, convidar os leitores (que na verdade é quem me interessa) para o rolê comigo. Invocando responsabilidades, conseqüências e consciências.

Questiono é a legitimidade dos produtos, das campanhas e das práticas: contemplando principalmente os anunciantes e suas agências, mas sem ignorar o papel fundamental da publicadora e replicadora do conteúdo. Considerando que mães e crianças são públicos vulneráveis, o papel da blogueira é inquestionável na saúde do coletivo, enquanto influenciador de opinião e gerador de demandas de consumo. E hoje, podemos seguramente estabelecer que as práticas de publicidade em mídias maternas estão ficando bem escabrosas. Já sabíamos disso nas revistas, mas até tu Blog da Fulana?

Foi o caso da campanha recente da bala-remédio que coloca crianças como alvo de publicidade infantil, promove venda casada e outras práticas legalmente questionáveis. Isso já está sendo apurado pelo Procon e outros órgãos responsáveis, graças à inquietude de algumas partes da sociedade de mãe e pais.

Nessa onda do salve-se “quem puder, mas me mande brindes e me convide para os eventos, me leve no cinema e eu te darei espaço no meu ‘cantinho’”, temos visto surgir um outro tipo de publieditorial. Que eu apelidei de anunciante fantasma!!! A blogueira fala um bem danado de tal conjunto de produtos, recebe por isso, declara na postagem que foi paga… mas não conta quem pagou. Mistério!

Por exemplo: “entenda a importância dos cereais matinais para seu bebê, eles são ótimos, eles são incríveis, eles tem probióticos, eles fazem seu bebê crescer, as pesquisas indicam que eles são tudo de bom, e eu também dou para meu filho. Esse conteúdo foi pago, porque esse blog é transparente e tem uma política clara de anúncios.” Pago por quem? Não sabemos. Não sabemos sequer quem encomendou as tais pesquisas. E se eu acreditar no trololó da blogueira, não sei nem que cereal comprar, que publicidade esquisita! Só desconfio que não é patrocinada pela quinoa ou pelo trigo sarraceno, porque a última vez que eu falei com os dois, eles não tinham nenhum centavo para fazer campanha de marketing.

Se é pago, é publicidade né?

Qual o interesse social de se criar a necessidade de consumo de cereais matinais em BEBÊS?

Pois bem, desvelando um pouco a história. Preciso contar que em anos de lactivismo1 venho coletando muita informação sobre o emaranhado de interesses que estão por trás de cada foto bonitinha do filho da blogueira famosa mamando tal leitinho, comendo tal mingauzinho, “ingenuamente” indicado por ela. Minha última participação ativa foi no ENAM 2014, o Encontro Nacional de Amamentação, que aconteceu em Manaus, onde fui convidada para falar um pouco exatamente sobre o que venho refletir aqui: publicidade inimiga da amamentação dentro de mídias maternas.

Voltemos aos cereais matinais dos anunciantes fantasmas: é público e notório que há uma manobra da indústria de substitutos ao leite materno para emplacar uma suposta necessidade de ‘engrossar’ o leite do bebê, que além de vender mais um produto da linha, atua na fidelização do pequeno consumidor. Mucilon hoje, ninho amanhã, leite moça para sempre!

Depois de um longo período de conquista de mercado totalmente desregulada, cercado de práticas terríveis como a promoção do desmame em massa em populações pobres de países com baixa regulação estatal (veja exemplo aqui) e conseqüente morte de bebês, as indústrias do leite estão há pelo menos duas décadas brigando mundialmente com os órgãos de saúde.

Esses órgãos conseguem, muito por conta do trabalho ativista, regular práticas de publicidade nocivas à amamentação através de leis. Em alguns países, por exemplo, “mãezinha” sai do hospital com lata de leite em pó. Isso só não acontece mais no Brasil, porque agora há lei que proíba. A Norma Brasileira para regulação desse tipo de publicidade é uma das melhores do mundo.

Com o tempo, os textos se ampliaram para proteger a amamentação exclusiva, e a lei é relativamente bem sucedida, o que deixa a indústria #xatiada porque não consegue desmamar tantos bebês, logo de cara. Então a bola da vez é vê-los brigar pelo filão do complemento alimentar > que – não se enganem – também é regulado.

Para vocês terem uma ideia, no Brasil é PROIBIDO fazer propaganda de:
√ Fórmulas infantis para lactentes
√ Fórmulas infantis de seguimento para lactentes
√ Fórmulas de nutrientes apresentadas e ou indicadas para recém – nascidos de alto risco
√ Mamadeiras
√ Bicos
√ Chupetas
√ Protetores de mamilo

O que significa que toda vez que você vê Dona Fulaninha no instagram compartilhando o “mimo” que recebeu da indústria de mamadeira – que tem um copinho, uma escova, um prendedor de chupeta é bem verdade, que não são regulados pela lei e são enviados estrategicamente para conseguir mídia espontânea para aqueles que são – ela, a agência de mídia social, os marketeiros e a indústria estão desrespeitando a lei. Punto e basta.

No Brasil, esses ítens podem ser anunciados, mas há uma SÉRIE DE NORMAS a serem respeitadas:
√ Leites em geral
√ Fórmulas infantis de seguimento para crianças de 1ª infância
√ Alimentos de transição para lactentes e crianças de primeira infância
√ Alimentos à base de cereais indicados para lactentes e crianças de primeira infância
√ Alimentos, bebidas à base de leite ou não que durante a sua promoção comercial forem apresentados como apropriados para crianças menores de 3 anos

Dentro dessa diferenciação (que a indústria e o marketeiro conhecem e sabem de cor, que não são bobos nem nada, boba talvez seja a mãe blogueira que entra de gaiata nessa campanha, correndo o risco de ser ela a pessoa acionada pela infração da lei) é que mora a tentativa da indústria de querer emplacar esses pseudo-alimentos para bebês. Entenderam? “Perdemos a batalha com a amamentação, vamos brigar pela alimentação complementar.”

E dá-lhe publicidade mal feita. E dá-lhe indústria desmamando bebê com MÃE de aliada.

Há também uma diferença de percepção para o consumidor: anunciar substituto do leite materno já é uma prática bastante questionável. Um “alimento” para um bebê maior, parece uma ideia tão mais aceitável não é?

Ainda assim, esses pseudo-alimentos são descredibilizados pelas pesquisas, pela comunidade científica séria e pelos órgãos de saúde. Muita gente sabe que cereais industrializados são engordantes, irrelevantes para bebês bem alimentados além de serem cheios de açúcar e aditivos viciantes.

Mas como continuar vendendo esse pozinho sem gastar muito dinheiro com a criação de um novo produto?
√ Mude a embalagem
√ adicione umas frutinhas (basta uns desenhinhos na embalagem e um aroma artificial ou idêntico ao natural no conteúdo)
√ dê um novo nome
√ invente uma nova aplicação
E pronto: os engrossantes que outrora eram chacoalhados na mamadeira foram para o pratinho.

Agora temos que fazer com que mães e pais acreditem que seus bebês precisam disso. Como? Publicidade.
√ ENCOMENDE PESQUISAS
√ FAÇA PROPAGANDAS NA TV
√ DISTRIBUA PARA A COMUNIDADE MÉDICA / ATUE EM SUA FORMAÇÃO
√ FAÇA EVENTOS PARA A MÍDIA
√ PAGUE UMA BLOGUEIRA. OU VÁRIAS. OU PAGUE UMA BLOGUEIRA IMPORTANTE E MANDE O BRINDE PARA OUTRAS.
(mas cuidado com a Nbcal, porque a multa é alta!!!)

E voltamos ao começo do texto. Você já deve ter visto na tevê, eu já vi em alguns blogs. Atente para as revistas do segmento e esperemos o pediatra da nossa cunhada receitar o pacotinho. É batata! (suspiro antes fosse).

Nessa campanha dentro dos blogs maternos, não está muito claro para mim de quem é a decisão de omitir a marca. Me parece um contra senso investir na cultura do cereal hiperprocessado no pratinho para bebês, sabendo que seu concorrente também vai fabricar (ou já fabrica) um desse. Se até agora a briga entre lactivismo e indústria parece o cerne da questão, vocês não acreditam o que as grandes marcas competem para ganhar hegemonia do mercado! É dantesco! De modo que vai dar um rolezinho por um blog comercial de mãe e veja quantos milhões de marcas diferentes de leites, cereais e complementos elas acham incríveis. É a indústria competindo pelo espaço, apenas.

Ainda assim, não me parece que Dona Fulaninha teria o poder de decisão de omitir a marca. O que torna esses anúncios ainda mais suspeitos.

Se por um lado o aumento da consciência do leitor (eba!) e a constante vigilância das ativistas (essas chatas!) contribuem para que a regulação dos abusos da indústria venha também da sociedade, e não apenas dos legisladores e órgãos fiscalizadores, por outro aperta o cerco para quem precisa lucrar com isso. Indústria, publicitários e mídias. E estamos observando o quão requintado o abuso pode ser. Eles não são criativos? Até com regulação eles dão um jeito, não é mesmo?

Estamos de olho!!
√ Viu um blog materno anunciando produto substituto ao leite?
√ Apresente para a blogueira a NBCAL.

Encontrou alguma publicidade de produto duvidoso para a saúde das crianças, contendo sexismo, publicidade infantil ou adultização numa mídia materna? Questione também!

Atuemos todos como agentes de vigilância das leis que protegem nossos filhos e o coletivo.

Imagem da web.

(*) Anne é mãe de dois e especialista em nada. Artista plástica por formação, pinta, borda, canta e sapateia. Tudo mais ou menos. Divide sua experiência de mãe e curiosa dos assuntos que cercam a criação de filhos na internet desde que eles nasceram, com abordagem bem humorada e ranheta, como lhe é peculiar. É editora do Mamatraca, um portal de conteúdo materno independente.www.mamatraca.com.br

(**) lactivista: ativista pela amamentação e lactivismo: ativismo pela amamentação.


Tags:  #MilcAlerta amamentação IBFAM legislação NBCAL publicidade

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Mariana Sá




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