Texto especial para o Milc de Anne Rammi*
Faço parte de um grupo de ultra privilegiados que matriculará o filho no ensino fundamental em 2016 na rede particular. Considero-me privilegiada apenas porque tenho opção de escolher entre uma rede e outra. Grande bosta. Porque a verdade é que pagando ou de graça meu filho à partir do próximo ano vai ser enfiado num moedor de carne.
À parte da tragédia pedagógica e falência generalizada de modelo que a esmagadora maioria das escolas que cabem no meu bolso representam, estou focada em investigar suas posturas quanto a alimentação. Eis que não paro de gerar anedotas saídas de um filme de David Lynch.
– … Blá, blá, blá, e a arte, e a socialização, e que abordagem humanista…
– Que legal. E as crianças se alimentam aqui? O lanche é da escola?
– A cantina oferece o lanche, mas também as crianças podem trazer.
– Em todos os níveis?
– Sim, desde o maternal.
– Vocês proíbem alguma coisa na lancheira?
– Sim. Não pode trazer bala, chiclete e refrigerante.
– Nossa. Que raro. Parabéns, é difícil alguma instituição escolar admitir que proíbe alguma coisa fora armas e drogas.
– Hahaha… É que temos uma abordagem séria com alimentação.
– E chocolate e suco de caixinha? Proíbe?
– Aí não, né?
– Mas vocês sabem que chocolate e suco de caixinha são a mesma coisa que bala e refrigerante, né? Cheios de açúcar e criam hábitos alimentares ruins…
– Veja bem… A gente recomenda que o lanche seja saudável. Mas não podemos interferir na escolha dos pais.
– Sei. E como vem as lancheiras, no geral?
– Ah, sempre um suco, um pãozinho ou bolinho recheado, biscoitos, frutas. Você verá quando formos às salas. Hoje inclusive tem aniversário na sala do maternal.
– Oi? Aniversário? No maternal? Vocês que oferecem o lanche?
– Não. Cada mãe manda.
– E tem uma recomendação?
– Não. Em dia de aniversário pode trazer que quiser.
– E comemora-se os aniversários do mês, ou cada criança no seu dia?
– Cada um pode comemorar no seu dia. As mães normalmente mandam bolo, brigadeiro e salgadinhos.
A coordenadora me contou que a filha dela estava naquela sala do maternal. Com menos de um ano e meio ainda não havia experimentado algumas coisas, e a moça tentando empatizar comigo, disse que se preocupava também com a quantidade de festas e a variedade de guloseimas que as mães mandavam.
– Precisar não precisa né? Mas a gente não pode impedir uma mãe de mandar o bolo que ela quer para a festa da filha.
– Mas fulana…. Isso é uma escola. Se ela que dar pasta americana para a filha na casa dela, não é problema meu. Mas vocês oferecem a escolha de uma família para todas as crianças!? Não tá muito certo isso.
– Não é bem assim. Se os pais nos orientarem que não querem que a criança coma tal coisa, a professora vai intervir.
– E como?
– Explicando, colocando a criança que não pode comer mais longe. Hoje mesmo eu pedi para as meninas não deixarem a fulaninha comer muito bolo. Só um pedacinho, não vejo problema.
– Mas aí vocês excluem e privam a criança que não tem nada a ver com isso. Vocês penalizam as famílias que fazem escolhas alimentares decentes.
– Errrr… Vamos ver as salas?
Para azar da coordenadora, a festa estava rolando solta quando passamos na sala dos bebês. Quando a porta se abriu, pelo menos 20 crianças e 6 professoras se refestelavam em um bolo de chocolate cheio de cobertura, enquanto encaravam uma pilha de enroladinho de salsicha e alguma outra fritura. Na ponta da mesa, uma loirinha tinha bolo de chocolate até no cabelo. Era a filha dela.
Não é nenhuma utopia desejar que as escolas tenham posturas condizentes com seus discursos. A normalização da oferta de hiperprocessados, açúcares e opções terríveis de alimentação é uma tragédia para a saúde das crianças e uma afronta para as leis mínimas de convivência coletiva.
Fala-se em equilíbrio: mas não tem nada mais desequilibrado que oferecer altas doses de açúcar diariamente no mesmo horário para a massa de crianças no Brasil inteiro. Se existe uma receita para a compulsão, deve ser essa. Eu não posso nem compreender como uma escola permite que salsicha passe da porta. As crianças que chegarem saudáveis no fim da adolescência são realmente vencedoras. Certamente nessa geração, não puderam contar com governo, escola e muitas vezes suas famílias no quesito bons hábitos alimentares.
Eu ainda indaguei um pouco sobre a noção de opções saudaveis e criação de hábitos. E pontuei, quando passamos pelas salas que estavam em horário de lanche:
– Você reparou que todos tomam suco de caixinha? Não tem ninguém tomando água!
– É. Mas é também, porque nessa idade criança não gosta muito de água.
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