Texto especial para o Milc de Mariana Sá*
Sempre que vejo filmes e seriados ambientados na década de 1950 fico perplexa com as situações nas quais o cigarro está presente. Imagino que as cenas procurassem ser fiéis às características da época, e o cigarro, assim como as roupas e mobílias, fazia, de fato, parte da rotina das pessoas, seja em casa ou no ambiente de trabalho.
Considero muito revelador que as pessoas olhem estarrecidas para aquele médico legal do centro comunitário atendendo grávidas e bebês em Call The Midwife, fumando um cigarro atrás do outro, ou para os publicitários que fumam o dia inteiro dentro do escritório em Mad Men e digam: “olha que absurdo nesta cena”.
O tabaco é uma droga lícita que há 20 ou 30 anos começou a ser alvo de políticas públicas contundentes para redução de consumo. Políticas que foram capazes de enfrentar um lobby poderosíssimo para incluir em seu bojo a regulação de comunicação. Aos poucos, fomos ficando intolerantes com o cigarro, o número de fumantes tem reduzido a olhos vistos ao longo das décadas e, felizmente, só vemos gente fumando ao atender paciente em cenas de filme de época. Ótimo!
A experiência positiva com as políticas antitabagistas alimenta a minha esperança em relação à publicidade de alimentos ultraprocessados, especialmente as dirigidas às crianças: tenho grandes expectativas de estar viva para ver meus netos estarrecidos diante das cenas de lanche e almoço em filmes ambientados do fim do século 20 e início do 21.
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Já imagino a mim mesma, velhinha, meio gagá e nostálgica, decifrando, os comentários dos meus filhos e netos no almoço de domingo, lá pelos 80 e poucos anos, sobre o novo seriado ambientado nos anos 2010:
“Vovó, a comida era assim mesmo como está naquela cena do supermercado?”
“Que absurdo, as crianças tomavam um suco feito com um pó misturado na água… para mim isso é coisa pra comer na guerra ou no espaço… que horror!”
E no seriado vai ter uma cena que mostra uma criança assistindo um anúncio feito com música infantil e mascotes dançantes:
“Jura, mamãe? Eles podiam anunciar direto para as crianças??? Podia fazer propaganda pra criança?”
Depois passariam a comentar a cena em que uma família feliz toma leite achocolatado de caixa café da manhã e:
“Vovô, e as empresas podiam fazer propaganda ‘disso’?”
E eu responderia que sim… e acrescentaria, saudosa, que eu fazia parte de um grande movimento que passou a questionar a publicidade mercadológica dirigida às crianças e que era uma das engrenagens que movem a mudança de paradigma… Que nunca aceitei a autorregulamentação e que quando se podia fazer publicidade para criança, eu fazia boicote… Especialmente em relação às empresas de produtos alimentícios.
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Enfim… estou aqui com meus dedinhos cruzados torcendo para que, o mais breve possível, o mesmo sentimento de perplexidade que temos hoje em relação ao consumo de tabaco no início do século aconteça também em relação à burrice atual em relação ao que comemos e anunciamos.
Quero que meus netos fiquem perplexos ao saber como açúcar era consumido por bebês e crianças em grandes quantidades e em situações rotineiras com lanche na escola, festinhas e sobremesas. Meus filhos lembrarão das próprias infâncias quando a oferta de açúcar era abundantes e estimulada. Torço para que falem da nossa falta de informação ou irresponsabilidade – nossa, dos adultos de hoje – como falamos da ignorância dos nossos avós e bisavós que fumavam em avião e na sala de espera dos hospitais.
Ao meu turno, fico perplexa e indignada, já nos dias de hoje, com a possibilidade das empresas que produzem porcarias comestíveis ainda se dirigirem as crianças no intervalo do desenho ou na prateleira do supermercado. E vocês, como se sentem?
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