“Como pôde o Milc, um movimento de mães para mães contra o consumismo e a favor da regulamentação da publicidade infantil, aceitar o apoio de uma corporação privada para a produção de conteúdo?”
Foi a essa pergunta que nos preparamos para responder quando decidimos procurar a Mercur e fazer uma ação publieditorial sobre consumo consciente durante a volta às aulas nos canais do Movimento Infância Livre de Consumismo. E a pergunta chegou.
O Milc sempre foi pautado por uma utopia das suas co-fundadoras: viver em um mundo em que os interesses humanos estejam acima dos interesses das empresas. Lutamos sempre exigindo do Estado que esteja firme em seu papel de regular o cenário de modo que práticas abusivas sejam evitadas. Lutamos sempre exigindo das empresas que atendem ao público infantil uma comunicação mercadológica justa.
Depois de anos observando, denunciando condutas questionáveis de empresas e sugerindo boicotes às empresas que abusam, concluímos que chegou o momento de também buscar identificar no mercado quem aposte em boas práticas e reconhecer este esforço, sem contudo abandonar nossa atuação exigente em relação ao Estado.
A partir desse raciocínio, começamos a pensar em dar visibilidade a alternativas de consumo viáveis às famílias, levando em conta a realidade da maioria das famílias urbanas: como, afinal, consumir de maneira mais consciente? Quais as empresas (grandes, médias ou pequenas) atuam de forma a preservar o bem-estar das pessoas? Quais empresas estão ocupadas em mitigar os danos causados pela sua atividade no ambiente?
Começamos dando visibilidade às pequenas empreendedoras maternas e incentivando o consumo a partir de pequenos negócios locais, mas nos deparemos com o fato de que não conseguimos acessar tudo o que precisamos por esta via. Ainda assim precisamos de produtos e serviços de grandes empresas nacionais ou internacionais para viabilizar nossa existência.
Foi então que conhecemos mais a Mercur e decidimos que o material escolar e o período de volta às aulas seriam uma boa maneira de ilustrar uma conduta que consideramos exemplar e que, por isso, desejamos ver nas grandes empresas.
Afinal, para o Milc, o que uma empresa de grande porte com alcance nacional pode fazer para além de não prejudicar a infância, também proteger os principais pilares de um desenvolvimento saudável?
1. Não anunciar para crianças: para nós é uma conduta primordial. Não anunciar para criança significa não fazer campanhas publicitárias em veículos tradicionais ou programas dirigidos às crianças. E vai além: inclui não patrocinar vídeos no YouTube, não encartar brindes colecionáveis, não posicionar produtos no ponto de venda de maneira a atrair o olhar e a ação das crianças visando a compra por impulso ou por constrangimento dos pais. Apreciamos muito quem também não faz ações de marketing em escolas. Muitas empresas que dizem que não anunciam para crianças, mas fazem ação com mascote e promovem evento com cenários onde é impossível fazer uma foto livre de “merchã”. Muitas vezes ainda convidam blogueiras maternas para o evento e nem contam que no evento vai rolar foto com mascote, pegando as influenciadoras de surpresa. Acreditamos que toda a comunicação publicitária e mercadológica deve ser dirigida aos pais, sem pegadinhas.
2. Não licenciar personagens: estampar produtos e embalagens com personagens é, para o Milc, o fim da picada. Por isso comemoramos muito a decisão da Mercur que deixou de renovar contratos e licenças de uso de personagens infantis. Acreditamos que o licenciamento encarece os preços ou acaba sacrificando a qualidade dos produtos para que o troço de não-sei-qual-personagem permaneça competitivo na prateleira em relação ao sem personagem (pode comparar os preços e a qualidade). Não acreditamos que um personagem estampado em uma borracha ajude no processo de aprendizado, pelo contrário atrapalha bastante a formação de uma consciência para o consumo sustentável, além de promover valores que não compartilhamos como a ostentação e a competitividade excessiva.
3. Buscar aperfeiçoar continuamente as matérias primas: para nós é muito importante que uma empresa preze pela qualidade dos seus produtos e esteja sempre buscando soluções para mitigar os danos causados pelo processo de fabricação, transporte, venda e descarte destes. Ganha nossa simpatia se a empresa estuda novos materiais ou se dispõe a novas formas de venda, como de produtos com refil ou embalagens retornáveis.
4. Pensar na cadeia produtiva completa: para nós é vital que a empresa saiba o que ocorre em todos os processos de fabricação – do fornecedor ao consumidor, passando por sócios e empregados – e estabelecer uma relação mais justa possível com todos eles. Experimentando soluções que melhorem o produto, sempre tendo em vista diminuir os danos causado ao ambiente, reduzir as emissões de resíduos poluentes, se antecipando, assim, aos desafios da sobrevivência da humanidade no planeta.
5. Ouvir a sociedade, perceber as utopias e novas necessidades que o futuro traz: é muito importante para nós que uma empresa esteja permeável e tenha mecanismos para compreender as necessidades reais do cotidiano das pessoas (ou de grupos que tenham necessidades específicas) para então desenvolver e cocriar produtos específicos, diferente daquelas empresas cujo marketing inventa necessidades falsas apenas para vender produtos já criados. Se existirem espaços para que os beneficiários da invenção participem do processo de desenvolvimento, cocriando produtos que atendam suas necessidades, melhor ainda..
6. Parecer e ser: a comunicação mercadológica é indispensável para fazer negócios no mundo de hoje. Não nos opomos ao marketing desde que seja dirigido aos adultos e muito transparente. E gostamos muito quando percebemos nesta forma de comunicação empresa-consumidor uma mensagem positiva e inspiradora, que coopere com mães, pais, professores e cuidadores nos processos de educação pautada em valores da cooperação, da coletividade, do respeito à infância e da ajuda mútua – em oposição à competição e ostentação. Para nós o bem-estar da criança é prioridade, assim como o respeito à diversidade. Fazer uma comunicação amorosa dirigidas aos adultos, que enalteçam a infância e todos os seus processos de desenvolvimento é, para nós, fundamental.
7. Priorizar formas de consumo consciente: o consumo consciente ainda é um privilégio. A opção pelo melhor e menos impactante ainda não é economicamente possível para a maioria da população brasileira. Não temos – aqui no Brasil e talvez também no restante do mundo – um sistema que nos permita saber com certeza tudo que precisamos saber sobre todas as empresas com quem negociamos. E aqui até informação é privilégio. Por isso, ficamos felizes quando vemos a comunicação da Mercur no ponto de venda e percebemos que são muito bem pensadas para não incentivar a compra por impulso, para promover o consumo compartilhado, o consumo responsável, o reuso e o não-desperdício, para possibilitar a reciclagem.
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Além das pistas listadas acima, nos ganhou o projeto Diversidade na Rua, um trabalho de escuta, participação e disseminação de boa informação sobre temas ligados à inclusão e acessibilidade. Para quem não sabe, a Mercur também produz, dentro de vários linhas facilitadores de atividades da vida diária, tais como engrossador de talheres para quem tem dificuldade de preensão palmar, pulseira de peso para quem tem tremores, giz de cera mais grosso, tijolinho e borrachão de apagar para uso facilitado de crianças e adultos, além de andadores para pessoas com dificuldades de locomoção, ataduras, almofadas terapêuticas e muitos outros produtos para a área de saúde.
São produtos desenvolvidos junto com as pessoas e os profissionais que conhecem as especifidades que causam um impactos extremamente positivo para autoestima dessas pessoas que possuem características e necessidades que requerem adaptações para a sua autonomia e participação na vida social. É bem mais que borracha.
Esta ação conjunta do Milc com a Mercur é um marco na existência do Movimento Infância Livre de Consumismo: buscar apoio na iniciativa privada não foi uma decisão fácil, mas necessária. Tornar estas iniciativas mais visíveis dentro das nossas possibilidades nos parece um bom caminho, especialmente para conseguirmos juntas diferenciar o que é consumo do consumismo.
Acreditamos ainda que esta ação seja positiva tanto para as pessoas que compartilham conosco o sonho de um mundo em que valores humanos estejam acima dos interesses das empresas, como para empresários que desejem que a sua atuação vá além da formação de lucros e acumulação de capital para poucos acionistas no curto e médio prazo.
Cientes que a nossa missão é levar informação e fomentar o debate sobre a influência das relações comerciais na educação das crianças, vigiando a atuação das empresas decidimos ir além das denúncias e sugestões de boicote – que sempre fizemos – e continuaremos a fazer – e recomendar alternativas. A Mercur foi a primeira grande empresa que ganhou nossa simpatia exatamente porque tem mudado suas condutas tendo em conta o impacto que causa no mundo. A partir de 2018, queremos ser vitrine de práticas e condutas que desejamos que floresçam e se multipliquem. Para um futuro livre de consumismo.
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