Texto especial para o Milc de Mirtes Aquino*
Eu e meu marido tivemos infâncias bastante parecidas. Nascemos no mesmo ano, em capitais nordestinas, primogênitos de famílias de classe média. Nossas experiências não foram muito diferentes no que diz respeito às brincadeiras, opções culturais, vida escolar etc. Entretanto, no que se refere à alimentação, tirando o fato de nossas mães terem caído no “conto do vigário” das fórmulas infantis e não terem nos amamentado por muito mais que algumas semanas, nossas experiências são as mais diversas. A forma de lidarmos com o alimento na infância chega a ser oposta, mas igualmente problemática.
Desde muito cedo recebi um rótulo bastante comum para as crianças de ontem e de hoje: a menina que não come! Eu simplesmente me recusava a comer. Meus pais primeiro quiseram me obrigar, depois, em pânico, passaram a topar qualquer negócio para garantir que a filha não ficasse de estômago vazio. E assim eu me alimentava basicamente de leite com achocolatado, vitaminas de banana, sucos de frutas e alguns sólidos que eu aceitava – lembro de ter no prato do almoço nada além de um ovo cozido ou uma beterraba pequena cozida. Um pouco maior (uns oito anos) lembro de ser diagnosticada com uma anemia persistente, então começaram também os complementos vitamínicos, inclusive uma beberagem que, dentre outras coisas, incluía ovo de pata cru e biotônico Fontoura. Valia tudo para me fazer comer, inclusive gritos e chantagem. Por muito tempo, a hora do almoço transformou-se no momento mais movimentado do dia, e muitas vezes minha comida era temperada com lágrimas!
Enquanto isso, na casa de meu marido, a realidade era praticamente inversa. Mas ele também recebeu um rótulo bastante comum entre as crianças de ontem e de hoje: o menino que come demais! Ele comia, e muito. E toda a família achava isso ótimo e o incentivava. Algumas de suas histórias viraram lendas familiares, como o fato dele, aos seis anos, se esconder debaixo da mesa para atacar os doces em aniversários infantis, aos nove anos comer “em uma sentada” diante da TV um pudim inteiro que sua mãe havia feito ou de seu tio sair para uma pizzaria com ele e seus três filhos e ter que pedir duas pizzas família: uma para sua família de cinco membros e outra para o meu marido, então um menino de 11 anos. A comida que ele gostava comia até cansar – ou até acabar – e todos os adultos achavam aquilo divertidíssimo.
Crescemos e nossos problemas infantis com alimentação nos levaram a um mesmo destino: adultos que tiveram que aprender a ter uma relação positiva com a comida. Eu comecei a comer e passei a alternar fases de comer compulsivamente com outras de dietas tibetanas para manter o peso até perceber que precisava de equilíbrio à mesa. Ele engordou muito depois que aumentou as horas de escritório e reduziu as de esporte, descobriu a pressão alta e os problemas de coluna e teve que se reeducar para selecionar o que e quanto comer.
E foi assim que viramos pais e nos deparamos com um grande desafio: ajudar nossa filha a construir sua própria relação com a comida.Uma coisa sabíamos: não queríamos ver nossas histórias reproduzidas. Ah, mas como isso é difícil! Passado o período de amamentação exclusiva, ela se recusava a comer, e tivemos que juntar todas as forças para não cair também no conto do vigário da mídia alimentícia e oferecer a ela os tais engrossantes ou o famoso “joga tudo no liquidificador com achocolatado que ela nem vai saber o que está tomando”. Quando começaram as festinhas e as famosas guloseimas, conversamos muito para acertar o passo e explicar a ela que não é porque uma coisa é gostosa que precisamos comer até não aguentar e o quanto é importante saber perceber as sensações de fome e saciedade. Erramos muitas vezes, corrigimos uma porção de coisas, certamente continuamos errando, mas estamos sempre atentos e abertos a melhorar, porque sabemos que a relação que ela terá para sempre com a comida depende muito do que for construído hoje.
E posso dizer que hoje os desafios para os pais são muito maiores. Os rótulos infantis mudaram pouco, ainda temos milhares de crianças estigmatizadas por não comerem ou por comerem demais, mas a oferta de alimentos e nossa cultura alimentar pioraram significativamente. Quando lembro que eu almoçava uma beterraba ou um ovo cozido quando recusava o almoço e hoje a filha de minha vizinha toma um achocolatado de caixinha ou um copo de complemento alimentar enlatado quando faz o mesmo, sinto um arrepio na coluna! O mesmo quando lembro que meu marido comia na frrente da TV o pudim feito pela mãe, enquanto hoje muitas crianças comem pacotes e pacotes de salgadinhos regados a refrigerante. De lá para cá muita coisa mudou! A indústria de alimentos ganhou proporções ainda não vistas e literalmente ganhou os confins do mundo. Puderam produzir mais e mais barato e investir muito mais em publicidade. Assim, ficou muito mais fácil, barato e convincente trocar alimentos naturais ou caseiros por alimentos enlatados, ensacados e encaixados.
Não é fácil, mas eu acredito que podemos evitar velhos erros, barrar a reprodução de rótulos infantis e principalmente encontrar alternativas para a indústria alimentícia. Não é fácil fazer diferente do que vivemos ou do que a mídia nos convence ser o melhor, mas ter uma visão crítica sobre nossas vivências e sobre o que nos chega de informação é uma ótima forma de começar. Minha filha hoje come muito melhor que eu e seu pai na sua idade, e é maravilhoso perceber nossos filhos nos superando!
(*) Mirtes é economista, funcionária pública e mãe da Letícia, que há 6 anos a ensina que é possível construir um mundo melhor. Escreve no Cachinhos Leitores, seu blog sobre literatura infantil.
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