legislação / 28 de julho de 2014

Para o bem das crianças, inviabilizam a publicidade infantil

Texto de Mariana Vieira*

Vamos ponto a ponto demonstrar por que o artigo “Para o bem das crianças, inviabilizam a programação infantil na TV”, de Guy Franco, é um desserviço, ao invés de buscar informar.

1- “Para o bem das crianças, inviabilizam a programação infantil na TV (…)”

A programação infantil em TV aberta não é inviabilizada com a proibição de publicidade dirigida ao público infantil, o modelo de TV comercial é afetado por restrições à publicidade infantil (de 30 horas diárias de conteúdo infantil em TV aberta na década de 80, temos menos de 10 atualmente), mas ele não é o único existente nem o melhor possível.
A TV no Brasil surgiu em 1950, seguindo exclusivamente o modelo de TV comercial privada americana até 1968, quando a emissora estatal TV Universitária de Recife entrou no ar. Nesses anos de existência, o modelo de TV comercial primou por conteúdo próximo ao interesse de seus patrocinadores, negligenciando o intuito da radiodifusão (de acordo com o Código de Ética da Radiodifusão no Brasil) que deveria aliar entretenimento “à informação do público em geral, assim como à prestação de serviços culturais e educacionais”, criando um modelo voltado à rentabilidade cujo maior objetivo para atingir tal fim são os “pontos no Ibope”. O espectador deixa de ser cidadão e passa a ser consumidor.

“A exibição de programas infantis torna-se conveniente na medida em que se constitui num produto lucrativo às emissoras, porque conquistam satisfatórios índices de audiência, veiculam propagandas (merchandising) e influenciam as vontades consumistas das crianças.” (FERNANDO; MACHADO; RODRIGUES, 2006, p. 3)

Essa lógica de que é preciso se submeter aos anúncios para se ter acesso ao conteúdo é a lógica das corporações de TV comercial que imperam em nosso país desde que a radiodifusão nele existe. Para Regina de Assis, ex-presidente da MultiRio, empresa que há 20 anos desenvolve ações educativo-culturais voltadas para a pesquisa de novas linguagens e a realização de produtos em diferentes mídias, comprometidos com o projeto educativo da cidade do Rio de Janeiro, as TV abertas não estão tão preocupadas com a formação das crianças, sua importância e herança cultural. Para ela, há problemas de financiamento, mas o que falta é uma preocupação maior dos programadores com a importância deste setor. A MultiRio recebeu uma condecoração da Unesco por uma das melhores práticas da educação em mídia na América Latina, recebeu prêmios no festival Animamundi, no Prix Jeunesse Ibero Americano, além do Prêmio Japão.

O modelo de TV que emergiu na Europa no século passado é da TV estatal, cujo conteúdo era controlado pelos governos dos países em que se inseriam e, portanto, transmitia informações enviesadas pela visão governista corrente. Com o processo de democratização do pós-guerra, a sociedade passou a participar da gestão dessas empresas de radiodifusão, por meio de conselhos gestores. Surgiu, então, o modelo de TV pública, como a BBC britânica, a PBS americana e a NHK japonesa, financiadas pelo contribuinte e de conteúdo democrático e independente de gestões ou preferências governistas, voltado para a contribuição social, a informação, a cultura e a educação.

Na Noruega, em Quebec e na Suécia, toda a publicidade direcionada ao público infantil é proibida. Em Quebec, mais de 40% do conteúdo da rede de TV aberta Télé-Québec é composto por programação infantil. As produções infantis canadenses estão entre as de maior qualidade do mundo em relação à promoção de valores sociais, reflexão crítica e criatividade (em estudo realizado pela Universidade de Montreal em 2010). Em 2013, três programas infantil noruegueses foram indicados ao prêmio Emmy International Kids Awards, que premiam os melhores programas infantis do mundo. Um deles, “Energikanpen”, recebeu o prêmio. Na Suécia, a rede Sveriges Television (SVT) exibe a programação infantil pelo programa “Bolibompa” durante os dias de semana pela manhã e possui um canal exclusivamente dedicado à conteúdo infantil, o “Barnkanalen”.

No Brasil o modelo de TV pública de fato (com garantias legais) surgiu em 2007 com a TV Brasil, que é finciada pelo orçamento da União e também por patrocínios culturais, prestação de serviços, e doações, mas iniciativas como a TV Cultura, financiada pela Fundação Padre Anchieta, desde a década de 1980 primam por esse modelo voltado à valorização do cidadão e ao exercício crítico da cidadania, com grande programação destinada ao público infantil, produções próprias e documentários, tendo reconhecimento de público e crítica por meio de prêmios internacionais. O maior público da TV Brasil é justamente o público infantil.
A história internacional da radiodifusão demonstra que o modelo de TV pública não só é viável como é necessário para romper com a lógica do financiamento publicitário a partir de inserções comerciais e promover programação voltada à sociedade: crítica, informativa, cultural, educativa, que também entretém.

2- “(…) Nenhuma emissora exibe mais desenhos animados”

A emissora de TV aberta comercial Rede Globo não exibe mais desenhos animados semanais desde 2012, migrando a programação infantil para o canal de TV a cabo Gloob, mas ainda há mais de 6 horas de programação infantil disponível na TV aberta brasileira atualmente, tendo a TV Cultura como líder em horas. Como mencionado anteriormente, o investimento em conteúdo pela TV comercial está diretamente vinculado a quão conveniente (e lucrativo) ele é, o que torna a defesa indiscriminada desse conteúdo questionável.

Há muito se forjou o termo “babá eletrônica” para se referir à programação de entretenimento infantil na TV, que mantém as crianças brasileiras em frente à TV por 5 horas e 22 minutos por dia (2012), maior média mundial, e retira dos cuidadores a necessidade de supervisão e até mesmo presença durante esse tempo. Defender que a grade de programação se amplie desconsiderando a qualidade e os riscos que a publicidade infantil oferecem às crianças é prezar pelo lucro das empresas de TV comercial, pelo lucro dos patrocinadores e pela comodidade dos pais, mas ignorar por completo o interesse das crianças.

A proteção às crianças de publicidade infantil não é uma arbitrariedade legislativa, ela se baseia em estudos que concluíram que o mecanismo da publicidade é o da associação entre personagem-produto (transformando a marca em símbolo) em retroalimentação. A representação midiática isola preferências por determinados brinquedos e personagens para determinado gênero e faixa etária, por exemplo, a animação da Barbie para meninas de 9 anos; essas preferências são então reforçadas pela publicidade, em que o personagem com que se criou um laço afetivo é então apresentado como produto disponível para essa menina de 9 anos. Esse produto é necessário para que se sinta da forma como a animação demonstrou e o comercial reforçou, e consumir o personagem-produto é o meio para se sentir e ser da forma que se espera a partir da interação com tal conteúdo.  Está estabelecida a partir de então uma visão materialista da realidade em crianças.

Não poder vivenciar o que a criança apreende como necessário para sua autorrealização e senso de identidade é um evento difícil e negativo que, segundo Kasser e Kanner (2003) é internalizado e cria senso de culpa na criança, podendo suscitar transtornos como a depressão e a ansiedade. A visão materialista da realidade em crianças cria, além de um senso de insatisfação com a própria vida, tensão em suas relações sociais, especialmente na relação com seus cuidadores.

O conceito atual de infância, pós-revolução industrial, é o de ser improdutivo economicamente, que produz demandas aos cuidadores e à sociedade. O que advém da relação da publicidade direcionada ao público infantil e a criança como indivíduo improdutivo são quatro eixos de violência:
– da criança em direção aos cuidadores, através do apelo emocional aos cuidadores para a compra do produto, que passam a desejá-lo porque sua criança o deseja;
– da publicidade em direção aos cuidadores, que afirma que todos os desejos devem ser atendidos, inventam necessidades e oferecem diretamente argumentos às crianças sobre por que elas deveriam desejar um produto específico;
– da sociedade em direção aos cuidadores, pelo papel social estabelecido dos pais de atender aos desejos da criança, oferecer a elas a ideia de que tudo é possível, desejo de que a criança tenha o que é melhor, exclusivo, e promove dessa forma uma estratificação social entre os que podem consumir e os que não podem;
– da expectativa que os cuidadores têm em relação a eles mesmos, “eu deveria ser capaz”, “é responsabilidade minha oferecer…”, “eu não tenho tempo para oferecer, então preciso compensar….”

Ao mesmo tempo uma nova forma de violência é impingida: a transmissão do valor do consumo consciente às crianças é universalmente defendida e imputada aos pais, e não se defende a lei que ampare e garanta a aplicação desse valor, protegendo as crianças da construção de uma visão materialista. Não se percebe que a tarefa de promover tal valor não é simples, visto a inabilidade de pensamento abstrato de crianças menores de 12 anos, e da construção material personagem-produto que é feita pela publicidade. É uma questão que cabe a educadores, dentro da proposta de Alfabetização Midiática e Informacional, um complexo tópico abordado em 2011 pela Unesco como programa de formação continuada para profissionais da educação (http://unesdoc.unesco.org/images/0022/002204/220418por.pdf). Imbuir cuidadores, que muitas vezes eles próprios não são alfabetizados em mídia, dessa tarefa é, no mínimo, absurdo.

3- “A proibição é o Estado assumindo a incapacidade de lidar com um problema (ou um suposto problema).”

A proibição de publicidade direcionada ao público infantil é o reconhecimento correto do Estado da circunstância atual que incapacita as pessoas a lidarem com o problema, abarcando para si a responsabilidade de regulamentar por lei e protegendo as crianças de um mecanismo comprovadamente nocivo.

4- “Autoridades preferem proibição ao povo instruído que toma as decisões que julgam melhores para si.”

É absurdo defender que as pessoas tomem as decisões que julgam melhores para si em detrimento de leis quando se trata de interações potencialmente danosas. É como defender que não haja lei que criminalize o homicídio, que se deixe que as pessoas decidam se é melhor para si matarem as outras.

5- “É delegar soluções a um bando de políticos pançudos, com marca de pizza debaixo dos braços; como se eles soubessem, à distância, o que é melhor para o seu filho.”

A resolução 163, que dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente (http://www.mpba.mp.br/atuacao/infancia/publicidadeeconsumo/conanda/resolucao_163_conanda.pdf), é do Conanda, composto por entidades da sociedade civil e ministérios do governo federal. Segundo ela, a publicidade infantil fere o que está previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código de Defesa do Consumidor. O Instituto Alana, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que trabalha para encontrar caminhos transformadores que honrem a criança, integra o Conanda, na condição de suplente, e contribuiu junto aos demais conselheiros na elaboração e aprovação desse texto.

6- “Proibir a publicidade voltada para as crianças é passar por cima da autoridade dos pais, poupar o trabalho deles de instruir e limitar suas liberdades de decisão.”

Proibir a publicidade direcionada às crianças é retirar a autoridade da publicidade sobre as decisões e o bem-estar da família e ampliar a liberdade de decisão dos cuidadores sobre consumir ou não, que produto consumir e por que consumi-lo. Como mencionado anteriormente, é desonerar os pais de um papel que estão impossibilitados de executar pelo próprio analfabetismo midiático ou pela incapacidade de crianças pequenas de compreender racionalmente questões imateriais.

7- “Mesmo que a publicidade fosse tudo o que dizem, a decisão dos pais, penso, ainda vale mais do que qualquer outra instituição”

Os efeitos da publicidade infantil são tudo o que dizem, mas, sim, existe a possibilidade de decidir ir contra a lógica da publicidade de maneira autoritária, decidindo dizer não aos apelos da criança, ou ceder indiscriminadamente a eles, mas optar por isso é cooptar com de tantas pressões e violências que se torna uma não-opção, por minar o bem-estar psicossocial da sociedade como um todo.

8- “Se algum dia houve a intenção de surgir um grande estúdio de animação ou de quadrinhos no Brasil, qualquer coisa parecida com uma Disney, Nickelodeon ou Studio Ghibli, a possibilidade, sob essa lei, foi enterrada de vez. Voltamos vinte casas.”

A maior parte dos desenhos animados que foram e são exibidos na grade infantil de TV aberta comercial é de origem estrangeira, por gerar renda em licensing e merchandising e ter custo mais baixo que de uma produção nacional própria. A partir da lógica da rentabilidade, nunca surgiriam novos estúdios de animação pelo intermédio da TV comercial.

9-  “Além de tudo, essa é uma medida que afeta principalmente aqueles com menos condições financeiras, que não têm acesso a essas mídias”

Os efeitos da publicidade infantil são ainda mais nocivos em crianças que vivem em áreas de risco social, já que elas possuem menor disponibilidade de tempo dos cuidadores, maior exposição à mídia e apresentação de valores materialistas ainda maior que crianças de áreas afluentes, tornando-as mais vulneráveis à baixa autoestima, depressão e ansiedade.

Texto anteriormente publicado no blog Maternidade Ativa, gentilmente cedido pela autora.

A imagem é parte de uma série de esclarecimentos da Rebrinc, Rede Brasileira Infância e Consumo.

(*) Mariana é educadora, à espera do primeiro filho, acredita que criança é gente e se realiza através da maternagem ativa e do respeito à infância.


Tags:  Conanda infância mercado produção audiovisual programação infantil proteção à infância quadrinhos resolução 163

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Mariana Sá




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