Texto de Anne Rammi*
Estava eu curtindo minha vida normal de mãe pós-contemporânea.
Cheia de crises, cheia de tarefas acumuladas, indecisa, decidida e feliz.
Eis que me deparo com este movimento que vos fala. Proteger crianças de publicidade… oras. Mas por quê?
Não cabe aos pais decidir o que compram? Qual é o problema, então?
Encurtando toda uma história, que não cabe agora nos poucos minutos entre um filho e outro, um trabalho e outro, um marido e outro (opa, isso não!), está claro, senhoras e senhores, que, quando se trata de publicidade no Brasil, sim, pode confiar em mim, as crianças precisam de proteção.
E vou contar anedotinhas para explicar por quê.
Curiosa que sou, andei me cadastrando em iniciativas do mundo marketeiro e recebo semanalmente infinitas newsletters que acham que eu sou uma publicitária genial e querem me ensinar: como vender mais, como aproveitar meu segmento, como entender a mente do consumidor, como acertar meu público-alvo. Cursos, workshops, palestras. Eles estão preparados pacas!
Munidos de argumentos, com táticas, jingles, frases, cores, sabores e, acima de tudo, com dinheiro, o mercado está armado até os dentes para fazer aquilo que precisa: vender.
Até aí tudo bem, mãezinha, mas por que tanta rebeldia?
Porque finalmente percebi que não há como escapar. Essa utopia criada de que a voz mater/paterna dentro de casa é o suficiente para criar consumidores conscientes, livres para decidir pelo bom e correto para si próprios, está cada vez mais clara aos meus olhos, a cada um dos emails que me chegam dizendo “entenda a mente das crianças e saiba como atingir seu público”. É uma utopia, pais e mães sozinhos não fazem diferença nenhuma frente à maquina do hiperconsumo.
Então eu bani a TV de casa. Pronto, exerço meu papel de mãe e eles param de consumir publicidade direcionada às crianças. Coisa de que, convenhamos, criança nenhuma precisa (pesquisas empíricas demonstram que não há sequer uma mãe na face da terra que vá sentir falta de publicidade infantil; ironicamente há várias famílias ainda defendendo essa prática indiscriminada e autorregulatória, coisa inexplicável, mas factual).
E os meninos são impactados quando encontram com os amigos.
Então eu mudo os círculos, não quero que convivam com crianças hiperconsumistas, não quero que entendam a vida como uma sequência de datas comemorativas onde temos que investir em presentes.
E os meninos são impactados quando vamos à padaria.
Estou falando de Carrossel, aquela novela deprimente.
Um remake de conteúdo mexicano da década de noventa (repita isso em voz alta e será motivo suficiente para não deixar seu filho assistir e, quem sabe, se você for do modelo inflamado como eu, tentar todas as manobras possíveis para que esse conteúdo não os atinja de forma nenhuma).
Adicione-se a isso tramas maquiavélicas de discriminação social, racial, todos os tipos já identificados de clichês de preconceito e incentivo a hábitos de convivência e conduta duvidáveis, mais uma pitada de exploração de trabalho infantil e merchandising, licenciamento de produtos e expansão de negócios para todas as vertentes. Indiscriminadamente.
Álbum, figurinha, revista, roupa, boneca, lancheira, sapato, tiara, cantores, comidas… Tem tudo do Carrossel. Tem festa de anivesário do Carrossel. As ativistas denunciam merchandising de iogurtinho, aparece merchandising de TV a cabo. O Conar finge que se importa e manda tirar, eles lançam uma revistinha colecionável para fingir que tratam de bullying como um assunto sério.
O Carrossel que está desgovernado – engolindo as crianças nas ruas, padarias, festinhas de aniversário e até mesmo em iniciativas interessantes, para pais descolados, como o Disco Baby, que recentemente promoveu sua última festa de 2012 com show temático da trupe da escolinha da professora Helena (sim, camaradas eu vi a primeira versão, e olha, posso te contar, EU NÃO ESTOU BOA) – só tem todo esse poder porque é UMA MÁQUINA DA PUBLICIDADE DIRECIONADA PARA CRIANÇAS friamente calculada para o lucro máximo.
Não se enganem.
Exigir que esse tipo de inserção mercadológica seja criteriosamente regulamentada (e, se você for inflamado como eu, por que não, proibida) é o mínimo que devemos exigir dos nossos governantes.
Pouco me importa se os conteúdos horrorosos para crianças vão continuar sendo fabricados. Penso que pelo menos sem a grana publicitária por trás o alcance dos Carrosséis rodopiando desgovernados será menor. É menos combustível, certo?
Ainda sobra tempo para uma última analogia, já que estamos na esfera do mundo automobilístico.
Já perceberam que em áreas escolares a sinalização aumenta, a velocidade diminui e a população deveria redobrar as atenções para a segurança das crianças?
Permitir que os conteúdos infantis sigam atrelados ao dinheiro da publicidade autorregulada é a mesma coisa que permitir que os motoristas dos automóveis decidam a qual velocidade devem trafegar – e colocar na mãe que atravessa seus filhos pela rua sem placa, sem faixa e sem sinalização a responsabilidade de fazê-los chegar do outro lado com segurança. Um cenário onde as denúncias só são feitas depois dos atropelamentos.
Quem vai parar esse Carrossel?
*Anne Rammi, 32 anos, paulista, paulistana e vegetariana aspirante, é artista plástica, blogueira e inconformada. Mãe de Joaquim e Tomás, interessada em dar uma geral no mundo antes que as crianças caiam nele. Escreve no Super Duper e é colaboradora do Mamatraca.
Tags: #desligacarrossel carrossel publicidade infantil