Texto de Daniele Brito*
Não tenho a obrigação de ficar calada. Ninguém tem a obrigação de concordar. Nasce a polêmica.
Quem me acompanha, mas quem me acompanha mesmo a ponto de me conhecer minimamente, sabe que não gosto de estar envolvida em assuntos polêmicos, que geralmente entram em combustão com argumentos muito rasos para sustentar uma ideia, uma opinião. Não tenho tempo nem estômago para administrar isso.
Muita gente deve ter uma ideia equivocada sobre mim pelo fato de eu escrever sobre maternidade e postar muitas coisas relacionadas a isso na fan page do blog. Devem me achar uma super mãe, aquela que está acima do bem e do mal, que certamente não reclama de nada e que vive eternamente feliz.
Não gosto desse rótulo e muito menos o reivindiquei pra mim.
Quem me acompanha, mas quem me acompanha mesmo a ponto de me conhecer minimamente, sabe que sou uma mãe em transformação, ou melhor, uma pessoa em transformação. Escrevo mais sobre meus erros que sobre meus acertos. Escrevo ainda sobre as coisas que descubro, que me fazem entrar numa catarse sofrida e me modificam. Como mãe e como ser humano.
Fui mãe pela primeira vez em 2003. Não tínhamos redes sociais e as informações estavam todas compiladinhas em portais www. Ainda assim, procurei me cercar de uma quantidade gigantesca de informação. Fiz minhas escolhas baseadas não só nessas, mas em vivências familiares.
Como mãe, fui eu quem decidiu o parto. Desconhecia o termo violência obstétrica, achei injustas as intervenções no primeiro parto (natural), o descaso dos profissionais de saúde que me cercavam, mas nunca me ocorreu que nós – a sociedade – teríamos argumentos e força para lutar contra um modelo obstétrico em vigor há pelo menos um século. Chorei ao saber da episiotomia, mas ingenuamente, achei que fizesse parte do pacote. E contra aquilo não me voltei.
Como mãe, fui eu quem decidiu não perseverar na amamentação dos dois filhos! Quem me vê defendendo ferrenhamente a amamentação prolongada acha que amamento meus filhos até hoje! A mais velha mamou até os quatro meses, quando acabou minha licença-maternidade. Ouvindo conselhos do pediatra e de posse de informações equivocadas em revistas, julguei ter feito a minha parte. “Mamou o suficiente”, dizia. O segundo, querendo amamentar até os dois anos ou mais, com leite suficiente pra isso, fui mal orientada por um profissional da saúde. Meu filho tinha refluxo e eu, hiperlactação. Ele não conseguia mamar e eu chorava. O pediatra deu o diagnóstico: manha. E eu sucumbi ao fracasso. Tendo refluxo, nenhum outro leite seria bom pra ele como o meu.
Até bem pouco tempo – pouquíssimo tempo, aliás – tinha o maior preconceito contra a amamentação prolongada. Não sabia que era possível amamentar durante a gestação, muito menos que mulheres eram capazes de nutrir dois filhos em idades diversas. Meu desconhecimento me levou a falar muita besteira.
Como mãe, fui eu quem optou pela combo chupeta + mamadeira, reproduzindo um padrão de vivência familiar. Eu usei. Todos os meus irmãos usaram. Ninguém morreu, veja que beleza!
Como mãe, fui eu quem optou por comidas prontas que facilitariam a vida doméstica. Diminuiriam meu cansaço e sobraria mais tempo pra mim e para minha filha. Com o segundo, a coisa foi diferente. Só não sabia que seria possível revolucionar geral com a comida servida a todos nessa casa. Mudança de hábitos, consumo consciente.
Como mãe, usei de recursos que aprendi ainda na infância, como gritar e dar palmadas para dar limites e mostrar a minha autoridade de mãe, por medo de ser permissiva e omissa. Só não sabia que, com isso, estava apenas ensinando o descontrole e a falta de assertividade em resolver as querelas domésticas. Desconhecia o poder da disciplina positiva.
Essas são as minhas escolhas. Não é porque as fiz que elas estão certas.
É muito cômodo escolher o caminho fácil quando não temos informação ou quando elas nos chegam de forma parcial. E, naquela época, eu queria me cercar de facilidades.
O que estava por trás de todas essas minhas escolhas? Aprendi a me fazer essa pergunta.
Existe mesmo livre escolha?
O mercado, através de suas peças publicitárias, nos bombardeia com mensagens que nos mostram que não somos capazes, que não conseguiremos dar conta. Que precisamos de um auxílio, de um produto que facilite nossas vidas. Pode ser de bisturi a macarrão instantâneo.
Encarar o meu papel de forma consciente exige um esforço contínuo. Procuro me cercar de informação não pasteurizada, que não queira me agradar, mas que me confronte com meus próprios medos, com minhas fraquezas.
Confirmar os vínculos com meus filhos exige de mim compromisso. Mudar, quebrar paradigmas pode significar sofrimento, MAS também pode ser um antídoto, um alento. Finalmente, sair da caverna é penoso, mas é libertador.
* * * * *
Hoje, num desabafo, contei algo que vem acontecendo na casa da minha vizinha. Não nos conhecemos. Nem mesmo sei o seu nome. Coisas da vida moderna.
Sua bebê nasceu no começo do ano e só sei que é uma menina, pois vejo no varal roupinhas cor de rosa. Desde então, ouço seus choros e sua mãe falando em tatibitati. Bate aquela nostalgia! Como é bom bebê novinho em casa!
Um dia publiquei na fan page que, quando a bebê chorava prolongadamente, eu colocava a mão na parede e dizia mentalmente “Calma, amiga. Vai passar. É só uma fase.” De lá pra cá, tenho ouvido muitos gritos. Descontrolados. Altos.
Conversando com meu marido, disse que estava com pena dela. Relembramos juntos vários momentos difíceis e recordamos do tempo que achávamos que isso nunca teria um fim. Até então, não sabia que os gritos eram direcionados à bebê. Imaginei que ela gritasse com as paredes, com o marido, com a babá.
Pontualmente, a bebê acorda às 00:30. Suponho que seja para mamar. Outro dia, então, não só ouvi os gritos, como pude discernir o que exatamente aquela mãe estava falando. Mandou a bebê – que não deve ter seis meses – calar a boca várias vezes. Mandou parar de manha. Uma adulta mandando uma bebê parar de manha.
E foi isso que me deixou triste, que me fez perder o sono. Muita gente mostrou preocupação com a mãe, que deve sim estar passando por um momento difícil, que deve, inclusive, estar com depressão pós-parto. Que seja. Afinal, sabemos que amor não se impõe nem se decreta. Se constrói. Mas na hora, naquele momento, só consegui me preocupar com a criança. E se os gritos forem acompanhados de outras formas de violência? Liguei as pecinhas e deduzi (veja bem) que há tempos essa bebezinha recebe ordens para se calar, para lidar sozinha com sua natural imaturidade. A mãe é adulta e dispõe de vários recursos para procurar ajuda, mas quais recursos a bebê possui?
Na minha fofoca matinal, escrevi algo sobre não estarmos preparados emocionalmente para ter filhos: as pessoas querem um filho, mas NÃO querem passar pelo processo. Querem um filho, mas não querem um parto. Optam pela cesárea. Querem um filho, mas não querem amamentar. Optam pelo leite artificial. Querem um filho, mas não querem cuidar. Contratam uma babá (que durma no quarto, inclusive). Querem um filho, mas não querem trabalho na hora de alimentá-lo. Optam pela comida industrializada. E ainda reclamam.
De fato, não gosto desse coitadismo materno. Somos da geração do menor esforço, do prazer instantâneo (como o macarrão), do prazer individual. Não queremos problemas, queremos resultados. A coletividade nos assusta. O outro não interessa. Agimos como eternos garotos mimados, num ciclo aparentemente inquebrantável da infantilização da vida adulta.
“Sentir-se ofendido é uma forma de negação que nossa cultura impôs com grande êxito”, como bem salienta Sergio Sinay.
A maternidade não pode ser vista como satisfação imediata de prazeres só porque a fantasiamos como um simples exercício de manipulação de um painel de controle.
Queremos as facilidades.
Dizem, entre sorrisos e músicas alegres nos comerciais da TV, que não precisamos de regras para criarmos nossos filhos. Como se isso pudesse ser de alguma forma libertador.
De fato, não precisamos de regras.
Precisamos de compromisso, responsabilidade, cumplicidade e ética.
*Daniele tem 32 anos e é estudante de Direito, mãe da Bia, de 9 anos, e do Otto, de 4, mora em Florianópolis/ SC e é autora do blog Balzaca Materna.
Tags: Daniele Brito educação filhos maternidade ser mãe