(aviso: esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência)
Lígia Moreiras Sena*, Mariana Sá** e Roberta Ferec***
Enquanto isso, em uma redação de revista para mães e pais, a equipe se reúne para finalizar uma campanha.
– Epa! Isso aí é promoção comercial, galere! – aponta o estagiário, aquele indivíduo sonhador e ainda em formação, que almeja um jornalismo nobre, verdadeiro e de prestação de serviço.
– Azativista pira! Vamos colocar no ar e bombar nossas estatísticas, just now! – diz o analista de mídias sociais, que é adepto do “falem mal, mas façam minhas métricas subirem”.
– Mas isso é publicidade negativa! Vamos ficar com um post barraco na web e no Facebook. Com aquelas malas da rede de maternidade ativa e consciente, esse tipo de texto se espalhará como rastilho de pólvora na internet: bastará uma lê-lo para que todas cheguem junto, empunhando seus coquetéis molotov. – diz o editor-chefe, muito preocupado em manter a reputação da revista, já tão abalada pelas diferentes investidas do departamento de marketing.
– Alguém me chamou? Falou de MommyBloc é comigo mesmo! – e o marketeiro entra na sala fingindo pouco interesse – Já temos os nossos assuntos tabus, mas agora, depois de muita porrada que já tomamos, sabemos como lidar com as polêmicas e fazê-las trabalhar a nosso favor. Vamos ter um monte de comentário negativo, é verdade, mas teremos uma porção de mães que se identificarão com o texto e virarão seguidoras da revista. É sempre assim, né, gente! Nossa revista fica em evidência, vendemos mais nas bancas e podemos aumentar o valor de exibição dos banners dos anunciantes e dos anúncios na revista impressa, basta um relatório de venda e outro de acessos: o anunciante não lê comentários, e mesmo que leiam, as ofensas são sempre dirigidas à nossa revista, ao autor do texto, ou às mães que dão fórmula. São poucos os que focam na relação comercial entre o anunciante e a revista, fiquem tranquilos! Não importa o conteúdo dos debates, os anunciantes querem mais é escândalo-confusão-e-gritaria, contanto que as métricas subam!
– E as métricas sobem! Os botões “compartilhar” e “comentar” são a única coisa que galera que fica indignada e a galera que se sente compreendida pode fazer! Compartilham azativistas, compartilham as que se identificam com o texto! – completa o analista de mídias sociais, muito contente com a intervenção do marketeiro.
– Tudo bem! – diz o editor-chefe – Tudo fez sentido agora: o anunciante está lançando esta fórmula infantil nova, certo? Nós sabemos que, por lei, não podemos anunciar. Mas… podemos garantir um tempo bom de banner até que a Anvisa tome providências. Sabemos que o cliente vai reclamar: “Mas só um banner? Quem olha pra essa merda de banner, pô? Essa porra não chama atenção.” Daí logo mostramos o plano: “Espera só até você ver o TEXTO que a gente vai colocar do-la-do do banner.” Eles saberão que teremos o nosso resultado: todo mundo falando da fórmula e da revista. E, olha, nossa reputação já sobreviveu a coisa pior – como aquela campanha da culpa materna.
– Mas nós vamos colocar o banner DESTE anunciante junto DESTE texto? – pergunta de novo o estagiário sonhador que começa a querer demonstrar seus conhecimentos – Mas anunciar um produto regulado pela NBCAL*!!! A regra é clara: “Outros alimentos ou bebidas à base de leite ou não, quando comercializados ou de outra forma apresentados como apropriados para a alimentação de lactentes e crianças de primeira infância – qualquer alimento pode ser enquadrado nesta categoria, a sua inclusão depende se seu consumo é indicado, direto ou indiretamente, para crianças menores de três anos no rótulo ou na promoção comercial. Leites em geral, leites fluidos, leites em pó, leites modificados, similares de origem vegetal e leites de diversas espécies animais.” Vai ficar com cara de publieditorial enrustido! Que vergonha! Não podemos ser denunciados para o Ministério da Saúde, para a Anvisa**, para o Conar e para o Ministério Público?
– Ah, sim, vão nos processar! – entra o advogado que estava passando no corredor e se arrepiou quando ouviu a expressão “Ministério Público” – Isso é certo que vão! E é bem provável que ganhem, mas quando ganharem já teremos nosso relatório bombado na mão, né, colega? – se dirigindo para o analista de mídias sociais.
– Isso mesmo! – responde o colega – Teremos que retirar tudo do ar, e talvez pagar uma multa, mas o “estrago” estará feito!
– Fiquem tranquilos: as punições são muito menores que os resultados. – arremata o advogado, enquanto o editor-chefe coloca suas anotações e seu tablet na pasta e vai se ajeitando para sair.
E lá estão o marketeiro e o analista de mídias sociais, esfregando as mãos, com aquele risinho nervoso que antecede o PUBLICAR e o comentário “oremos!”.
Senhoras e senhores, aplausos para o markete, ops, para o editor-chefe!
***
A amamentação no nosso país é um fiasco graças a este tipo de profissional que se ajoelha diante das corporações, dos departamentos de marketing, que escoram a sua preguiça de estudar ciências nas informações trazidas por propagandistas vendedores. Este tipo de profissional preguiçoso e vendido não são exclusividade da comunicação, podemos vê-los nas escolas, nos hospitais, nas maternidades, nos consultórios de psicologia e de nutrição, nas mais variadas especialidades médicas e onde mais houver uma criança precisando de cuidados e uma mãe buscando orientação.
Talvez a autora que escreveu ESTE texto seja tão vítima do sistema quanto nós todas. A diferença é que ela transmite a ignorância a que está sujeita. Provavelmente ela nunca pensou que – ao alcançar as metas e premiações dela – ela faz parte de uma trama finamente engendrada para gerar lucros para poucos ao custo da saúde pública.
Se tem uma coisa que nós temos em comum é o cuidado de não compartilhar links de textos ruins, nem para ironizá-los, nem para denunciá-los. A intenção é muito simples: não vamos fazer nossa parte para ampliar a audiência em nenhum um internauta a mais. Vale copiar e colar o texto para mostrar o que foi que indignou, até dar um print para mostrar a foto usada: mas dar o link, compartilhar, nunca, never, ‘jamé’!
(*) Norma brasileira para comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância, bicos, chupetas e protetores de mamilo.
(**) Está na lei: “No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, por meio da Gerência de Monitoramento e Fiscalização de Propaganda, de Publicidade, de Promoção e de Informação de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GPROP), é o órgão responsável pelas ações de educação, informação, monitoração, fiscalização e regulação da promoção comercial dos produtos abrangidos pela NBCAL, com o objetivo de garantir a promoção, proteção e o apoio ao aleitamento materno.”
* Ligia é mãe da Clara, mora em Florianópolis, estuda a violência no parto e escreve o blog Cientista Que Virou Mãe.
** Mariana é publicitária e mestra em políticas públicas. É mãe de dois e escreve no blog viciados em colo. Co-fundadora do Movimento Infância Livre de Consumismo.
*** Roberta é mãe de dois, expatriada e uma das editoras do portal Minha Mãe que Disse.
Texto publicado simultaneamente do CqVM, MMqD e aqui no Milc.
Fonte das informações legais:
http://www.anvisa.gov.br/propaganda/cartilha_nbcal.pdf
Imagens:
– Reunião da série Mad Man: http://bit.ly/1eAsM0M
– Lobo em pele de cordeiro do site: http://bit.ly/1jKAlCu
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