criança e mídia / 12 de junho de 2014

O outro lado do comercial de cerveja

Texto de Desirée Ruas*

continuação do post Infância e Publicidade: um olho na Copa e outro no comercial de cerveja

O que está por trás das campanhas de marketing que promovem os comerciais de cerveja? Um olhar mais atento sobre as estratégias de promoção do produto mostra que, apesar do discurso ser de incentivo ao consumo responsável, na prática, as coisas funcionam de forma diferente. Afinal, a pequena tarja com a cláusula de advertência com a frase “beba com moderação” ou algo parecido, exibida no fim do comercial, definitivamente não é a mensagem que convence o público. O calor, a praia, a cerveja gelada, a associação com mulheres com roupas mínimas, as festas, a turma jovem bonita e descontraída, o bom humor, o slogan e a música são os elementos que dominam a cena e que ficam marcados na memória de quem assiste aos comerciais na televisão ou vê um anúncio impresso.
Para tentar disciplinar o efeito da publicidade de cerveja sobre o público menor de 18 anos, existem algumas recomendações do órgão de autorregulamentação do setor publicitário para a criação dos anúncios. Os comerciais não devem relacionar o produto com crianças e adolescentes, utilizar pessoas com menos de 25 anos, fazer uso da sensualidade como principal foco da mensagem, usar elementos que despertem a atração do público infantil, como fez uma marca, há alguns anos, quando inseriu uma tartaruga em suas campanhas, dentre outras recomendações. Mas, na prática, pouca coisa mudou nos comerciais de cerveja nos últimos tempos e seu poder de convencimento sobre o público, inclusive crianças e adolescentes, preocupa.
O comercial é divertido, bem humorado e passa uma imagem de que beber só traz felicidade. Ele não mostra o que acontece com enorme frequência e está intimamente relacionado ao uso do álcool: a possível dependência química, os problemas físicos e psicológicos, o estresse e os conflitos familiares, a violência doméstica, as brigas na rua, os acidentes de trânsito e um grave problema de saúde pública com custos para toda a sociedade.
Há uma mega estrutura para promover a cerveja no país. E o que temos como contrapropaganda? Desde a inserção em variados tipos de mídia, a um incrível sistema de distribuição por todo o país, além de caminhões, cartazes e freezers com a marca no ponto de venda e até patrocínio para eventos como blocos adultos e até infantis durante o carnaval — tudo estrategicamente organizado para o incentivo ao consumo da bebida que atinge também crianças e adolescentes. E o que a sociedade tem estruturado, de forma contínua, para mostrar a realidade sobre os efeitos do álcool, discutir o assunto nos meios de comunicação, promover campanhas nas escolas e fiscalizar o consumo por menores de idade em festas e bares?
Como a publicidade de cerveja está em todos os lugares fica difícil afastar as crianças de suas mensagens. A associação do produto com os eventos esportivos, sobretudo o futebol, cria um cenário ainda mais problemático em tempos de Copa do Mundo. As crianças gostam de ver seus times em campo, gostam de acompanhar a seleção brasileira, se divertem vendo jogos pela televisão e os comerciais de cerveja estão lá e em outros tipos de mídia, falando para um público que nem pode consumir tal bebida.
‘Se é permitido fabricar e comercializar, por que não é permitido anunciar a cerveja?’ é o argumento de quem não quer restrições ao seu negócio e defende a liberdade de expressão que, na verdade, nada mais é que a liberdade de comércio. Não é crime o consumo da cerveja por maiores de idade. A cerveja é uma droga legalizada. Entendemos que os adultos que usam a bebida sabem que o álcool também é considerado uma droga psicotrópica, pois atua no sistema nervoso central, provocando mudança no comportamento de quem o consome, além de ter potencial para desenvolver dependência. O consumo do álcool não apenas é admitido como incentivado pela sociedade. Ilegal é o seu uso por menores de 18 anos e também deveria ser o estímulo contínuo ao seu uso por todas as faixas etárias pelos mais diferentes meios de comunicação, cotidianamente, e também pela ação dos patrocinadores de eventos.
A preocupação com a exposição ao álcool não é exclusiva de quem tem filhos pequenos ou adolescentes. Após a maioridade, o problema continua. É muito comum serviços de pronto atendimento do país cheios de moças e rapazes que chegam inconscientes por abuso da substância em finais de semana, após participarem de festas e shows. Frequentes também os acidentes de trânsito, brigas na rua, problemas físicos e sociais, conflitos domésticos e o consumo concomitante de drogas ilegais. No momento em que a luta contra as drogas torna-se cada vez mais complexa, devido ao aumento do número dos usuários pelo mundo e da diversidade de substâncias utilizadas, é coerente a forma como a cerveja é promovida, seja junto às crianças e aos adolescentes, futuros consumidores em potencial, e também junto ao público jovem e adulto?
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, OMS, o consumo de álcool no Brasil supera a média mundial que é de 6,2 litros por ano, considerando as pessoas acima de 15 anos. No Brasil, o consumo é 8,7 litros por pessoa. E o contato com o álcool acontece cada vez mais cedo, segundo o 6º Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública e Privada, feito nas 27 capitais brasileiras e divulgado no final de 2013. A idade média do primeiro contato com as bebidas alcoólicas é 13 anos. 60,5% dos 50.890 estudantes declararam já ter consumido álcool. Cerca de 15,4% dos que tinham entre 10 e 12 anos declararam que tinham consumido álcool no ano da pesquisa. A proporção sobe para 43,6% entre os adolescentes de 13 e 15 anos, e para 65,3% entre 16 e 18 anos.
Números que nos levam a uma preocupação crescente devido ao fácil acesso à bebida. Apesar de ser uma exigência da lei, muitos bares e outros pontos de venda não pedem o documento de identidade para se certificarem de que o jovem que vai consumir a bebida tem mais de 18 anos. Como as famílias lidam com o assunto e como os pais explicam para os filhos porque eles mesmos consomem a bebida? Quais os limites e a responsabilidade que devem estar associados ao seu uso?Por que alguns pais costumam incentivar o uso do álcool por filhos menores de idade? E como os meios de comunicação e eventos como a Copa do Mundo contribuem para agravar o uso e o abuso do álcool na sociedade? Algumas das muitas questões que precisam ser debatidas nas escolas, nas empresas, na mídia, sobretudo na televisão, lembrando sempre que ela é uma concessão pública e, por isso, deve cumprir seu papel de promover informação, cultura, educação e diversão de qualidade, mas que hoje está, em parte, monopolizada por anúncios de cerveja e outras mensagens que atingem negativamente crianças e adolescentes.

Para saber mais:
Conheça a campanha do Ministério Público do Estado de São Paulo “Cerveja também é Álcool”, com uma petição para que o Congresso Nacional inclua a publicidade de cerveja na Lei Federal 9.294/96, que regula o tema.

O Ministério da Justiça fez uma campanha muito interessante para o carnaval: “Bebeu, perdeu” era o mote. A copa seria uma excelente oportunidade para repetir esta ofensiva. Conheça a campanha, clique aqui.

Imagem da campanha sobre Classificação Indicativa feita também pelo Ministério da Justiça.

(*) Desirée é mãe de duas, jornalista, especialista em Educação Ambiental, coordenadora do Movimento Consciência e Consumo, de Belo Horizonte. Atua em causas como defesa da infância e combate ao consumismo infantil, leitura crítica da mídia, direitos e deveres do consumidor e ações socioambientais por uma vida mais saudável.  www.conscienciaeconsumo.com.br

 


Tags:  bebidas bebidas alcóolicas consumo de álcool copa infância publicidade de bebidas

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Mariana Sá




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