legislação / 12 de agosto de 2014

Aspectos atuais do controle da publicidade infantil no CDC

Texto de Renan Bueno Ferraciolli anteriormente publicado no blog Última Instância

Instrumentos que funcionavam há cerca de meio século para coibir abusos cometidos na publicidade talvez não sejam mais eficazes

5 horas e 17 minutos (1)  esse é o tempo médio diário que a criança brasileira fica diante do televisor, segundo o último levantamento realizado em 2011. Nesse mesmo ano, apenas a título exemplificativo, levantamento realizado pelo Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana (2) na semana do Dia das Crianças demonstrou que as crianças foram impactadas por 1.077 (!!!) inserções publicitárias nos 15 dias que antecederam a data comemorativa em 15 canais monitorados, tanto da televisão aberta quanto dos canais por assinatura (3) .

O cenário acima ilustrado demonstra, por si, a grande preocupação que o tema desperta na sociedade. Há farto material científico (4) que evidencia o elevado grau de suscetibilidade do público infantil aos apelos contidos na publicidade, pois, como ainda está em desenvolvimento, a criança não tem o discernimento necessário para compreender que a comunicação a ela dirigida tem uma única finalidade: convencê-la de que o produto ou serviço ali mostrado é bom para ela e deve ser adquirido.

Tal conclusão já seria suficiente para a adoção de severas medidas restritivas ou até mesmo o banimento da comunicação publicitária voltada ao público em comento, mas não é isso que acontece. Tanto a indústria quanto a cadeia de fornecedores envolvidos com o tema sustentam que a criança não deve ser privada do contato com esse tipo de comunicação – que existe há pelo menos um século aqui no Brasil, saliente-se – saudável para o seu desenvolvimento e que caberia aos pais ou responsáveis legais a tarefa de controlar o desejo nelas despertado por meio da negativa tão habitualmente invocada no exercício do pátrio poder (5).

Ocorre que nossa sociedade mudou e talvez os instrumentos que funcionavam há cerca de meio século para coibir os abusos cometidos na comunicação publicitária, dentro dos lares, não sejam mais eficazes, especialmente por estarmos imersos numa “sociedade do hiperconsumo” (6).

Este artigo tem o propósito de evidenciar que a questão está longe de ter uma solução e que as linhas adotadas para isso, seja pelo legislador, seja pelo intérprete, não têm sido eficazes para coibir os abusos cometidos.

1. A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO

A evolução global da proteção jurídica das crianças esteve sempre intimamente ligada ao desenvolvimento da noção de que esse público não deveria ser simplesmente encarado como um “miniadulto”, integrante da força de trabalho, inclusive, e começou a ser mais bem delineada na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948 (7).

Entretanto, como pontifica Norberto Bobbio (8), os direitos humanos vêm passando pela fase da especificação, o que não foi diferente quanto à tutela da criança, que em 1959 foi marcada pela Declaração Universal dos Direitos da Criança.

É com base nesse panorama que o constituinte originário, quando da elaboração da Carta Constitucional hoje vigente, estatuiu um amplo arcabouço protetivo da criança no âmbito constitucional, com comandos bem claros ao legislador infraconstitucional, inclusive.

Contudo, muito embora a Constituição de 1988 seja do tipo analítica, seu detalhamento (acertadamente) não contemplou uma disciplina específica para o tema da proteção da criança diante da comunicação publicitária, ainda que, sobre este último tema, tenha havido o cuidado de apontar expressamente algumas restrições ao livre exercício da atividade, de maneira expressa:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(…)

§ 4º – A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso”.

E é justamente com base nesse dispositivo que as principais vozes do mercado sustentam que não seria possível a adoção de restrições severas ou até mesmo a vedação da comunicação publicitária voltada ao público infantil em nosso país, tal qual ocorre em grande parte do mundo ocidental (9) .

Para rebater esse e outros argumentos, o festejado constitucionalista Virgílio Afonso da Silva dispôs-se, em parecer de referência sobre o tema, a formular respostas a seis quesitos formulados pelo Instituto Alana, a saber:

“1. A Constituição Federal, em seu artigo 220, § 4º, prevê restrições legais à publicidade de determinados produtos (tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias). Esse dispositivo impede que haja restrições à publicidade voltada ao público infantil, ou seja, sobretudo aquela publicidade que fala diretamente com as crianças, utilizando alguns recursos como animações, desenhos animados, personagens do ideário infantil, celebridades do mundo infantil, crianças atuando, músicas infantis etc.?

2. O referido dispositivo impede que haja restrições à publicidade de produtos outros, como é o caso da publicidade de produtos alimentícios com altos teores de sódio, açúcar, gorduras saturadas e gorduras trans e de bebidas não alcoólicas com baixo valor nutritivo voltada ao público infantil?

3. O referido dispositivo permite que haja restrição total, ou seja, a supressão da publicidade dirigida ao público infantil de produtos alimentícios com altos teores de sódio, açúcar, gorduras saturadas e gorduras trans e de bebidas não alcoólicas com baixo valor nutritivo [refrigerantes], considerando-se os danos que causa à saúde dessas pessoas?

4. A atividade publicitária pode se valer da cláusula geral de liberdade de expressão e, sendo uma atividade comercial, tem a mesma garantia?

5. A Constituição Federal asseguraria o direito de a indústria do setor alimentício fazer publicidade de seu produto? Mesmo que voltada diretamente ao público infantil, considerando que este público está em fase de desenvolvimento que não lhe permite a compreensão integral das mensagens comerciais?

6. O direito à vida, à saúde e à alimentação, direitos fundamentais, bem como o direito da criança de que sejam estes direitos fundamentais assegurados com absoluta prioridade, como preceitua o artigo 227 da Constituição Federal, podem justificar restrições ao direito à livre iniciativa e à atividade publicitária?” (10).

Após abordar e afastar, de forma magistral, as críticas dos defensores da liberdade plena de comunicação publicitária de que o Estado estaria cada vez mais assumindo um caráter paternalista e de que o público infantil há décadas vem sendo impactado com esse tipo de comunicação sem que, com isso, muitos adultos de hoje tenham desenvolvido patologias ou ficado obesos, por exemplo, o autor responde corajosamente aos quesitos, partindo da premissa de que não há um direito absoluto à publicidade de produtos não arrolados no supratranscrito dispositivo constitucional, sendo a restrição nele contida apenas uma forma de retirar do legislador ordinário um ônus para restringir a publicidade desses produtos.

A partir da ideia de que direitos podem ser restringidos e de que os fundamentais estão positivados em nossa Carta Constitucional sob a forma – quase em sua totalidade – de princípios, baseando-se na doutrina de Alexy, com suporte fático e âmbito de proteção amplos, o insigne doutrinador sustenta que seria possível restringir ou até mesmo vedar a publicidade de alguns produtos como forma de assegurar o fiel cumprimento do comando disposto no artigo 227 da Constituição, desde que tais medidas passassem pelo teste da proporcionalidade.

Considerando que a atividade publicitária estaria constitucionalmente resguardada pelo direito geral de liberdade de expressão e de livre iniciativa no mercado, qualquer restrição consubstanciada em outros direitos fundamentais igualmente previstos na Constituição é válida, desde que adequada (apta a fomentar os objetivos perseguidos), necessária (se a realização do objetivo perseguido não puder ser obtida, com a mesma eficiência, por outro ato que menos fira o direito fundamental atingido) e proporcional em sentido estrito (se o grau de realização do direito a ser fundamentado justificar o grau de restrição do direito atingido).

E a atividade publicitária já é restringida no plano infraconstitucional, tendo o legislador ordinário adotado a regra da proporcionalidade e construído a disciplina da publicidade abusiva prevista no Código de Defesa do Consumidor (11).

2. A DISCIPLINA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

“Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

(…)

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.”

Ao tratar da questão no dispositivo em referência, o legislador procurou resguardar os valores mais importantes que devem ser considerados ao se estabelecerem as relações de consumo.

“Basicamente, a novidade introduzida pelo Código de Defesa do Consumidor consiste em evitar tudo que oprime ou explora o consumidor, toda a malícia ofensiva a direitos fundamentais da pessoa humana, todo atentado a valores essenciais da convivência social e das próprias pessoas em seus elementos substanciais à vida e à segurança. A publicidade abusiva é aquela que está em dissonância com os valores sociais daquele mercado de consumo.

Um exemplo recorrente é o da publicidade dirigida a crianças, onde brinquedos têm mobilidade própria, o que seria impossível. Percebe-se que o elemento fantasioso estará quase sempre presente na publicidade, mas deve estar inserido de forma que não apresente nuances ao produto ou serviço que alterem suas características básicas e influenciem na decisão do consumidor de adquiri-lo num limite acima do tolerado ou chame a atenção em razão dos defeitos da publicidade veiculada.” (12).

Entretanto, a já explorada conjuntura da sociedade do “hiperconsumo”, que agrava a suscetibilidade de um público que não possui o discernimento suficiente para assimilar de maneira adequada a comunicação publicitária, leva cada vez mais os aplicadores da norma em comento a adotarem posições mais firmes na proteção do público infantil, o qual é caracterizado por uma condição de “vulnerabilidade exacerbada” no mercado de consumo:

“A noção de que o consumidor é soberano no mercado e que a publicidade nada mais representa que um auxílio no seu processo decisório racional simplesmente não se aplica às crianças, jovens demais para compreenderem o caráter necessariamente parcial da mensagem publicitária. Em consequência, qualquer publicidade dirigida à criança abaixo de uma certa idade não deixa de ter um enorme potencial abusivo.” (13).

Dessa forma, não raras são as medidas administrativas e judiciais adotadas por órgãos públicos e entidades civis que atuam em defesa do consumidor com base no aludido dispositivo legal.

2.1 A controvérsia na aplicação do Código de Defesa do Consumidor à questão

Tomando como exemplo a atuação do órgão público de defesa do consumidor mais antigo do país, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo – Procon-SP – que desde 2007 vem enfrentando incisivamente a questão de forma mais frequente, notadamente a partir das denúncias encaminhadas pelo Instituto Alana, é flagrante o fato de que a mediação legislativa feita pelo Código de Defesa do Consumidor não vem atendendo aos anseios da sociedade civil organizada.

Dois casos que foram alvos de investigação e punição pelo Procon-SP, cujos processos administrativos sancionatórios correspondentes foram levados à apreciação do Poder Judiciário pelos fornecedores autuados, demonstram bem esse ponto.

O primeiro deles refere-se a uma promoção realizada pela empresa Sadia em 2007, cuja prática infrativa apontada pode ser melhor compreendida a partir da leitura da peça inaugural do processo administrativo sancionatório:

A empresa acima qualificada veiculou a campanha publicitária “promoção mascotes sadia” em revistas, outdoors, televisão e internet, com vigência entre 19/06/2007 a 12/08/2007, ou enquanto durarem os estoques, sendo necessário para participar a aquisição de 05 (cinco) produtos da empresa contendo selos de cores diferentes (vermelho, azul, amarelo, preto e branco), acrescentar mais r$ 3,00 (três reais) em dinheiro e trocar por uma mascote (patinador, tenista, jogador de vôlei, jogador de futebol e judoca). No vídeo veiculado na tv e no sitewww.mascotesadia.com.br aparecem somente crianças que cantarolam o “jingle” da promoção, brincam, dormem e vão à escola com suas macotes, outrossim, neste anúncio que é vocalizado por locutor, há a utilização de comandos imperativos, com a utilização das palavras “confira”, “colecione” e “participe”, contrariando o item 2 do anexo h do código de auto-regulamentação publicitária do conselho de auto-regulamentação publicitária – conar – que disciplina a propaganda comercial de alimentos, refrigerantes, suco s e bebidas assemelhadas, nas quais o anunciante deve abster-se da utilização de qualquer estímulo imperativo de compra ou consumo quando o produto for destinado à criança. Pesquisas demonstram que 85,5% das crianças assistem tv diariamente, 74% acessam a internet e se informam através destes meios, crianças estão cada vez mais influentes na hora da compra, 88,5% acompanham a pessoa responsável pelas compras, 56% disseram que o que é mais fácil de pedir e conseguir são comidas, lanches e doces (as fontes das pesquisas são, respectivamente: kiddos brasil 2006, pesqusia wellbeing, kiddos 2006 e pesquisa cn.com.br). Dessa forma, o autuado aproveita-se da inexperiência, da deficiência de julgamento e da influência que as crianças exercem sobre os pais para conseguirem as mascotes, induzindo-os à aquisição de produtos que não são voltado s especificamente para elas. A razão da compra dos alimentos vinculados à promoção não é pautada pela sua necessidade ou pela qualidade desses produtos, mas pela vontade das crianças em adquirir a coleção completa das 05 (cinco) diferentes mascotes. Sendo assim, o autuado infringiu o §2º do artigo 37 da lei 8.078/90 – código de defesa do consumidor. (processo administrativo nº 1.067/07)

Todavia, conforme já salientado, não foi esse o entendimento do Judiciário bandeirante, o que pode ser observado na ementa do acórdão relacionado ao caso:

APELAÇÃO. Publicidade abusiva. Pretensão anulatória de auto de infração e imposição de multa do PROCON. Indução ao consumo de produtos de qualidade nutricional baixa, aproveitando-se da deficiência de julgamento e experiência de crianças. Não verificação, in casu, de abusividade Inteligência do art. 37, § 2º, do CDC. Campanha publicitária que se ateve aos limites da livre concorrência e da legalidade. Inexistência de razão, ante a campanha veiculada, para se afirmar ofensa à hipossuficiente. Sentença de procedência reformada apenas para redução da verba honorária, ante a necessária equidade – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

Não se verificando na campanha publicitária excesso qualificável como patológico nem ofensa aos hipossuficientes (crianças), por desrespeito à dignidade humana, por indução de comportamentos prejudiciais à saúde ou à segurança pessoal, por exploração de diminuta capacidade de discernimento ou inexperiência, por opressão, ou, ainda, por estratégia de coação moral ao consumo ou abuso de persuasão, não se justifica a autuação e a punição aplicada pelo Procon. (TJ-SP, Primeira Câmara de Direito Público. Apelação Cível nº 2008.001.33979. Relator Vicente de Abreu Amadei, j. 27.11.2012)

Para instalar devidamente a controvérsia, faz-se necessário colacionar relevante trecho do mencionado acórdão:

“Reconhece-se, é fato sociológico notório dos tempos atuais (ditos pós-modernos), o poder de influência das crianças sobre as decisões de consumo das famílias, especialmente quando incitadas por forte publicidade promocional. Mas tais influências não são absolutas e, ademais, ainda são contornáveis em famílias estruturadas, ou em meio de crianças bem assistidas.

Fraco, então, o impacto da campanha publicitária da autora no âmbito decisório e de ação de consumo do público-alvo, ou seja, na esfera de julgamento e de compra, por pensamento e conduta exclusiva das crianças e dos adolescentes.

Em outras palavras, porque a publicidade é arte de inflamar a vontade de compra, em persuasão dirigida à decisão e à ação de consumir, e, porque neste processo (da campanha ao consumo) os infantes e jovens participam apenas no campo do fomento do desejo, quiçá expresso no âmbito doméstico – uma vez que a decisão e a compra (ação consumidora) dos produtos alimentícios apontados estão concentrados na pessoa dos adultos (pais ou responsáveis dos menores) -, impõe-se admitir que não há, propriamente, exploração de ‘deficiência de julgamento e experiência’ diretamente amarrada ao ponto final do consumo (decisório e operante).”

O segundo caso, também ocorrido em 2007, retrata semelhante prática, in verbis:

A empresa acima qualificada veiculou a campanha publicitária “é hora de shrek” em televisão, com vigência prevista entre 12 de junho e 19 de agosto de 2007, sendo necessário para participar a aquisição de 05 (cinco) embalagens de qualquer um dos produtos da linha “gulosos” somada à quantia de r$5,00 (cinco reais) em dinheiro para efetuar a troca por um dos modelos do relógio do shrek. Os relógios foram apresentados em quatro versões, distinguindo-se entre cores e personagens do filme “shrek terceiro. No vídeo veiculado na tv aparecem crianças, em ambiente escolar, com destaque a um diálogo entre duas crianças, uma com o relógio do shrek e outra sem; no mencionado diálogo a criança portadora do relógio ao ser indagada sobre que horas seriam, questiona o fato do outro colega não possuir o mesmo e afirma que: “é hora de você também ter um desses”, além de encerrar o diálogo declarando com constrangimento o fato de “não saber ver as horas”. A mensagem publicitária atribui relevância à posse do relógio; representa o simples “ter por ter”, uma vez que a criança sequer sabe ver as horas, conforme declaração da criança ao final do diálogo. No mesmo sentido, o referido anúncio que é vocalizado ao final por locutor, utiliza comandos imperativos, como se observa nas expressões: “junte” e “colecione”, contrariando o artigo 37, bem como o item 2 do anexo h do código de auto-regulamentação publicitária do conar – conselho de auto-regulamentação publicitária, que determinam que o anunciante deve abster-se da utilização de qualquer estímulo imperativo de compra ou consumo quando o produto for destinado à criança, no intuito de ser a publicidade elemento coadjuvante na formação desta última, como cidadã responsável e consumidora consciente. A forma de apresentação da publicidade, dessa forma, apresenta como fundamento para a compra dos alimentos vinculados à promoção não a sua real necessidade, mas sim a vontade das crianças em adquirir a coleção completa das 05 (cinco) versões dos relógios, independente de saber utilizá-los; sendo assim, o autuado infringiu o §2º do artigo 37 da lei nº 8.078/90 – código de proteção e defesa do consumidor, por aproveitar-se da deficiência de julgamento e experiência da criança no intuito de promover a venda de determinados produtos. (processo administrativo nº 1.626/08)

Diferentemente do caso anteriormente relatado, ao apreciar a questão durante o julgamento de Ação Civil Pública com semelhante objeto, o Judiciário bandeirante assim se posicionou:

“Ação Civil Pública Publicidade voltada ao público infantil. Venda casada caracterizada. Aquisição dos relógios condicionada à compra de 05 produtos da linha “Gulosos”. Campanha publicitária que infringe o artigo 37 do Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. Utilização de verbos no imperativo inadequada Proibição pelo Conar do uso dessa linguagem em publicidade voltada às crianças. Prática comum, que deve ser repudiada. Publicidade considerada abusiva, que se aproveita da ingenuidade das crianças. Sentença reformada. Apelo provido. Verbas sucumbenciais impostas à ré”. (TJ-SP, Sétima Câmara de Direito Privado. Apelação Cível nº 0342384-90.2009.8.26.0000. Relator Ramon Mateo Junior, j. 08.05.2013)

Igualmente relevantes são os pontos trazidos no acórdão, os quais merecem transcrição:

“É certo que, atualmente, as crianças estão mais exigentes e formam opiniões fortes desde cedo. Não que isso seja um problema, é bom que elas sejam espertas e independentes. As circunstâncias em que vivemos hoje exige isso.

Não se pode esquecer, todavia, que, mesmo independentes e espertas, elas ainda são crianças e carecem de atenção e cuidado para tomarem as decisões certas. É preciso também que um pouco da ingenuidade da criança seja estimulada, a fim de que ela não perca os prazeres da infância.

(…)

Com certeza, muitas crianças, senão todas importunariam seus pais, avós, tios, ou qualquer pessoa com poder aquisitivo para tanto, a adquirirem os relógios e, consequentemente, os produtos. Tal conduta vai de encontro ao disposto na alínea “e” do artigo 37 do Código supramencionado. Os responsáveis seriam verdadeiramente constrangidos pelas crianças e, ainda que se diga que eles têm o discernimento para dizer não, sabe-se que uma criança contrariada pode nos colocar em situações vexatórias.

Além disso, o fato de uma criança não ter os relógios pode colocá-la em situação de inferioridade perante outras tantas que possuam a coleção. A ingenuidade e a inexperiência das crianças as tornam, muitas vezes, insensíveis, até cruéis com aqueles que são diferentes. A publicidade, então, pode ferir a alínea “d” do artigo 37. Esse tipo de campanha publicitária,

embora comumente utilizada, deve ser considerada abusiva e não normal. É preciso mudar a mentalidade de que aquilo que é corriqueiro é normal. Não é bem assim.”

Fica evidente o posicionamento divergente do Judiciário paulista na apreciação de casos praticamente idênticos, o que só reforça a necessidade de se aprofundar a discussão e rever a disciplina legal hoje vigente sobre a matéria.

3. CONCLUSÃO

Nota-se, diante de todo o exposto, que os dispositivos legais hoje existentes sobre o tema não têm sido capaz de manter a pacificação social esperada das normas jurídicas, seja no plano constitucional, no qual dependeriam sempre de uma discutível – e de resultados juridicamente pouco seguros – “ponderação entre direitos fundamentais em conflito”, seja do necessariamente aberto comando do Código de Defesa do Consumidor.

Dessa forma, a adequada solução para a instalada controvérsia repousa na elaboração de comandos mais claros e precisos, seja no campo da autorregulamentação publicitária, cuja produção sobre o tema infelizmente sequer tem alcançado o patamar protetivo já assegurado no arcabouço jurídico existente (14), verdadeiro paradoxo, se for considerado que a produção normativa na autorregulamentação sempre é mais técnica e avançada do que a produção legislativa ordinária, seja por meio desta última, necessariamente representativa dos anseios democráticos da sociedade, agora tão em evidência.

Ocorre que o projeto de lei mais avançado para dirimir as discussões sobre o tema (PL 5921/2001) tramita no Congresso Nacional há doze anos, cuja proposta inicial, que conta atualmente com quatro emendas (15), assim dispunha:

“Art. 1º O art. 37 da Lei nø 8.078, de 11 de setembro de 1990, passa a vigorar com o acréscimo do seguinte § 2ºA:

Art. 37 (…)

§ 2°A. É também proibida a publicidade destinada a promover a venda de produtos infantis, assim considerados aqueles destinados apenas à criança.”

Diante de todas as evidências científicas, comandos legais relacionados e paradigmas internacionais, faz-se necessário avançar, e com coragem! As crianças não podem ser usadas como instrumento de convencimento para as compras dos adultos, os únicos que de forma consciente podem avaliar a comunicação publicitária e exercer o direito de escolha adequadamente, o que não pode ser exercido por um ser humano ainda em desenvolvimento.

Os produtos continuarão a ser vendidos, os serviços a serem prestados e o mercado de consumo sobreviverá, certamente com mais ética e permitindo que a criança verdadeiramente ocupe o seu papel e não se preocupe apenas em ter o tênis da moda, o brinquedo mais novo, etc.

(1)Disponível em: http://noticias.r7.com/blogs/daniel-castro/brasileiro-ja-assiste-tv-durante-5-horas-e-meia-por-dia-diz-ibope/2012/01/23/, acesso em 24.06.2013.

(2)Mais informações sobre o projeto estão disponíveis em: http://defesa.alana.org.br/post/29103602505/alana-defesa, acesso em 24.06.2013.

(3) Disponível em: http://biblioteca.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/docs/Relat%C3%B3rio-DiadasCrian%C3%A7as2011_.pdf, acesso em 24.06.2013.

(4)Merece destaque a obra “Por que a publicidade faz mal para as crianças”, disponível em http://biblioteca.alana.org.br/banco_arquivos/Arquivos/downloads/ebooks/por-que-a-publicidade-faz-mal-para-as-criancas.pdf, que traz um compilado dos principais argumentos científicos para sustentar a tese, acesso em 24.06.2013.

(5)Tais argumentos podem ser observados na obra “Cidadãos responsáveis e consumidores conscientes dependem de informação (e não da falta dela) – As normas éticas do Conar na publicidade de produtos e serviços destinados a crianças e adolescentes”, disponível em:http://www.conar.org.br/conar-criancas-e-adolecentes.pdf, acesso em 24.06.2013.

(6)Relevante é a passagem em que Lipovetsky aborda diretamente o tema: “A sociedade de hiperconsumo não vê apenas a desagregação das culturas de classe; é contemporânea da promoção de um mesmo modelo consumista-emocional-individualista em todas as classes de idade. De um lado, as maneiras de consumir são cada vez mais marcadas pelas diferenças de idade; do outro, não há mais nenhuma categoria de idade – ainda que seja a primeira infância – que não participe plenamente da ordem do consumo. (…) O filho ‘mudo’ faz parte de uma época finda: na situação atual, ele escolhe, emite solicitações, dá sua opinião por ocasião das compras, os pais levando em conta seus desejos e lhe transmitindo um estilo de consumo finalizado pelo prazer. Eis-no na era da criança hiperconsumidora, escutada, tendo o direito de fazer as próprias escolhas, dispondo de uma parcela de poder econômico, controlando direta ou indiretamente uma parte das despesas das famílias.” In. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 119-120.

(7)Como, por exemplo, no artigo XXV: “1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”.

(8)Sobre o assunto, o autor assim se manifesta: “Além de processos de conversão em direito positivo, de generalização e de internacionalização (…), manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha de tendência, que se pode chamar de especificação; ela consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinação dos sujeitos titulares de direitos. (…) Essa especificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida, seja à diferença entre estado normal e estados excepcionais na existência humana. (…) Com relação às várias fases da vida, foram-se progressivamente diferenciando os direitos da infância e da velhice, por um lado, e os do homem adulto, por outro.” In. BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 62-63.

(9)Como sintetiza Virgílio Afonso da Silva: “Seria possível, por exemplo, restringir a publicidade de alguns produtos aos horários em que praticamente só os adultos seriam atingidos (como o faz a Grécia), ou proibir o patrocínio comercial de programas infantis (como o fazem a Finlândia, a Dinamarca e a Suécia), ou restringir ou vedar publicidade de todos ou alguns produtos durante ou logo antes ou logo após programas de TV dirigidos a crianças (como o fazem a Áustria, o Reino Unido, a Austrália e a Bélgica), ou vedar o uso, na publicidade voltada à criança, de personagens do imaginário infantil ou de apresentadores de programas infantis (como o fazem a Holanda, a Finlândia e a Dinamarca), ou proibir a publicidade de alguns tipos de brinquedos (como o fazem a Alemanha e a Dinamarca), ou restringir totalmente a publicidade, dirigida às crianças, de determinados alimentos (como o faz o Reino Unido), ou mesmo restringir totalmente a publicidade, dirigida às crianças, de quaisquer produtos (como o fazem a Suécia e a Noruega) (…).” SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalidade da restrição da publicidade de alimentos e bebidas não alcoólicas voltada ao público infantil. São Paulo, 2012. Disponível em:http://biblioteca.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/Parecer_Virgilio_Afonso_6_7_12.pdf, acesso em 24.06.2013, p. 28.

(10)SILVA, Virgílio Afonso da. Idem, p. 1-2.

(11)SILVA, Virgílio Afonso da. Idem.

(12) FEDERIGHI, Suzana Maria Pimenta Catta Preta. In. SODRÉ, Marcelo Gomes; MEIRA, Fabíola e CALDEIRA, Patrícia (coord.). Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Verbatim, 2009, p.236.

(13)BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. In. GRINOVER, Ada Pellegrini (et al). Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 10 ed. Reio de Janeiro: Forense, 2011, p.358.

(14)Sobre o assunto, conferir crítica conjunta formulada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e Procon-SP, disponível em:http://www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=3416, acesso em 09.07.2013.

(15)Disponíveis em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_emendas?idProposicao=43201&subst=0, acesso em 09.07.2013.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

GRINOVER, Ada Pellegrini (et al). Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 10 ed. Reio de Janeiro: Forense, 2011.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalidade da restrição da publicidade de alimentos e bebidas não alcoólicas voltada ao público infantil. São Paulo, 2012. Disponível na internet: http://biblioteca.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/Parecer_Virgilio_Afonso_6_7_12.pdf, acesso em 24.06.2013.

SODRÉ, Marcelo Gomes; MEIRA, Fabíola e CALDEIRA, Patrícia (coord.). Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Verbatim, 2009.

 

Texto publicado nas Coluna do site Última Instância no dia 7/8/2014

 


Tags:  Código de Defesa do Consumidor Conanda

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