Texto especial para o Milc de Lara Naddeo e Patrícia L. Paione Grinfeld*
Vez ou outra, encontramos pelas redes sociais textos com dicas para organizar os espaços das crianças. No meio deles, quase sempre há frases que sugerem separar o que está quebrado, pequeno, gasto, obsoleto ou simplesmente não desperta mais interesse à criança. Conselhos enfáticos para reciclar e doar são apresentados como medidas sustentáveis e socialmente responsáveis. Não é à toa que tais “faxinas” lavam a alma de quase todos nós.
Porém, não dá para colar no discurso de que plástico, metal, vidro, alumínio e papel podem ser consumidos à vontade porque são recicláveis. Sabemos que a reciclagem desses materiais implica, no mínimo, em consumo de energia e de água, o que, invariavelmente, cria mais uma dívida com o meio ambiente. Portanto, reciclar não soluciona o problema de por fim ao que não nos serve mais.
Como assinalado nas dicas de “faxina” e organização, outro destino ao que não nos serve mais é a doação. Mais do que a reciclagem, até porque nem tudo que deixamos de lado dá para ser reciclado, a doação aparece como um passe de mágica para dar fim aos tantos cacarecos que juntamos e ajudamos a juntar pelo caminho. Quase num piscar de olhos nos livramos deles num gesto aparentemente enobrecedor, que nos dá um sentimento de potência incrível, nos permitindo, inclusive, nos defender da fragilidade de nosso sistema social com a velha frase “cada um dá o que tem”. É para dormir em paz a noite toda – especialmente se não conhecermos o lado de quem recebe.
Nem sempre doamos o que o outro não tem, precisa ou quer. Em geral é bem o contrário: doamos o que temos em excesso ou não precisamos/queremos mais. Doamos para aliviar qualquer coisa que nos habita (culpa talvez seja a principal razão) e não porque somos socialmente responsáveis e queremos viver num mundo menos desigual e injusto.
Não temos dúvida de que muitas doações são bem recebidas por muitos e que, em se tratando de instituições com algum caráter de proteção/promoção social, a grande maioria que as recebe depende delas para funcionar. No entanto, ao separar um saco de coisas em casa, quem se pergunta se o outro quer aquilo que desprezamos, ainda mais quando nessa seleção há roupas descosturadas, brinquedos sem partes, livros despedaçados, eletrônicos que não funcionam?
Se observarmos as doações que fazemos para pessoas próximas e queridas, em geral, perguntamos se elas têm interesse naquilo que separamos. No entanto, quando doamos a instituições ou pessoas socialmente desfavorecidas, raramente fazemos esta pergunta, pois partimos do pressuposto de que tais instituições ou pessoas estão sempre vivendo a falta. Será?
Muitas instituições recebem nossas doações porque têm um destino para elas. Outras, no entanto, as recebem para fazerem a política da boa vizinhança; entopem suas salas e armários com objetos que não lhe fazem serventia ou não têm condição de uso, silenciando um modo de funcionar que perpetua relações de exclusão e submissão.
De alguma forma, a quebra desse ciclo tem tudo a ver com nossas relações de consumo. Ter nos dá poder, ainda mais quando se imagina que alguém não tem. Doar para nos livrarmos do que não nos serve mais alivia a alma, mas raramente promove dignidade, em seu sentido mais amplo do termo. Por isso, a doação só deve ser uma possibilidade para dar fim ao que não nos serve mais quando instituições e pessoas puderem negar aquilo que não precisam ou querem.
Já é tempo de pensarmos em alternativas para aquilo que não nos serve mais. Um caminho sempre é a redução do consumo. Outro, para aquilo que precisa ser consumido, mas tem um “prazo de validade” – como roupas e brinquedos das crianças – começa a encontrar nos dispositivos de venda e troca de usados um destino bastante interessante. Que bom!
(*) Lara é psicóloga, trabalha no Instituto Fazendo História, e acredita no poder transformador das narrativas pessoais, reais e fantásticas, contadas e criadas para e por crianças e adolescentes.
Patrícia mora em São Paulo, é psicóloga e 2x mãe. Por acreditar que pequenas atitudes podem ser transformadoras, faz seu trabalho de formiguinha na vida e na profissão. É idealizadora do blog Ninguém cresce sozinho e nunca acreditou tanto na importância do trabalho do MILC quando, ao ler “Bruxa, Bruxa, venha à minha festa” para um grupo de crianças entre 2 e 8 anos, uma menina com 3 disse: “Olha a Barbie”, apontando para a chapeuzinho vermelho da história. www.ninguemcrescesozinho.com
A imagem faz parte da instalação de Hiroshi Fuji Central Kaeru Station — Where Have All These Toys Come From? que nos leva a uma refletir sobre como as crianças são vítimas precoces do consumismo.
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