maternidade / 4 de novembro de 2014

A biblioteca pública e a naturalização do consumo

Texto de Nat Catuogno Consani*

Certas “lógicas” vão se naturalizando sem que a gente se dê conta, mesmo que a gente fuja de todas as formas conscientes dessa naturalização, daí a dificuldade em quebrar os círculos viciosos. Por exemplo: nesse domingo, meu filho esteve pela primeira vez numa biblioteca pública. Por lá folheamos diversos livros, lemos algumas historinhas, e ele gostou muito de uma delas. Quando estávamos pra ir embora, ele pediu que eu comprasse o livro preferido.

–não dá, filho.
–por que não? você não tem dinheiro?
–não é isso. é que esse livro não está à venda.

Me olhou com espanto. Li nos seus olhinhos a dúvida. #Comassim não está à venda? Tem alguma coisa que não esteja à venda?

#artederua,  SP

#artederua, SP

 

Fiquei alguns segundos tentando entender a fala dele, a surpresa dele e que discurso –ou realidade– estava implícito naquele espanto. Foi então que percebi. E entendi. E foi aí que ficou claro pra mim esse processo de naturalização, de naturalização do consumo como mediador e provedor das relações, dos prazeres, do ócio, do acesso, da vida; o processo de “coisificação”, “precificação” e “possessão” de tudo, como se viver estivesse à venda (e de fato está, se a gente pensar que até a água, mineral essencial pra vida, é hoje considerado um “bem privado” pra muitas empresas e pessoas).

Meu filho estava naturalizando o consumo como regra.

E, sabe?, nós aqui em casa refletimos muito sobre isso e tomamos muitas medidas práticas pra permitir uma infância menos mediada pelo “ter”. Enzo assiste a pouca TV –o mínimo possível– e quase nada na TV convencional (nem aberta nem fechada); o que rola aqui com mais frequência é Netflix, sem propaganda e oferecendo certa autonomia aos pais para programar aquilo que os filhos vão ver e quando.

Raramente frequentamos lojas de brinquedos e, quando vamos a alguma, sempre escolhemos a de brinquedos educativos, pequena, de bairro. Presente também é o tipo de coisa que damos com parcimônia e agora temos preferido fazer coisas ou construir brinquedos ao invés de comprá-los prontos.

Não estimulamos personagens licenciados por aqui. Enzo já viu e quis “pocoyos”, já viu e achou super legal bonecos dos Backyardigans, já ficou todo empolgado com uma mochila da Dora Aventureira. Confesso que, ali na hora, no calor do momento, diante de olhinhos faiscantes, pedintes e felizes com a possibilidade de materializar um pouco mais um personagem que é muito caro ao pequeno, dei uma balançada. Em muitos desses momentos hesitei em negar e me peguei quase abrindo a bolsa e botando a mão na carteira. É só um boneco. É só uma mochila. É só um brinquedinho. Mas resisti, porque sei que não é só um brinquedinho.

Marido e eu compramos pouquíssimas coisas pra nós. O básico, o necessário. Acho que filho deve ter me visto em lojas meia dúzia de vezes, quando muito.

Mas o fato é que, apesar disso, a vida que levamos é quase toda mediada pelo consumo. Enzo sempre testemunhou processos em que a regra foi: quero uma coisa, essa coisa tem um valor monetário, se tenho esse valor vou lá e compro. Tudo o que ele tem hoje e com o que se identifica, lhe foi comprado, muitas vezes na presença dele. E mesmo quando não ganha o que pede, a situação remete ao consumo, pela negação ou impossibilidade dele (como a pergunta que o filho me fez na biblioteca deixa muito claro): “não vamos levar isso hoje porque não temos dinheiro para pagar”. Pela sua experiência e experimentação –que é como ele aprende e apreende o mundo– tudo é objeto à venda. Tudo tem um preço a ser pago, e a distância entre o desejo do filho e ele, entre o objeto e a posse –objeto x posse dá outro post, aliás– se traduz em uns quantos reais.

Então que, nesse contexto, não levar à rede de lojas de brinquedos infantis e privilegiar o educativo, o artesanal, o de madeira, o sem pilha-nem-bateria, o orgânico, o que possibilita mais criação, é ótimo. Mas continua sendo consumo. Evitar as propagandas da TV e os programas infantis que estimulam o consumismo é lindo. Mas não evita o contato com o consumo excessivo promovido por nós mesmos –os adultos– sem perceber nem querer. Não comprar licenciados para não inserir o filho na louca roda das porcarias criadas exclusivamente pra arrancar dinheiro e parte da infância das crianças (se acha que exagero nessa descrição, por favor, leia isso aqui) é uma decisão política da qual sou muitíssimo convicta. Mas não é suficiente. Não tem sido suficiente. Porque nós –minha família e quase todo mundo que conheço– vivemos a maior parte do cotidiano comprando coisas e fazendo coisas que precisam ser pagas.

1) Não estou dizendo que a “culpa” seja 100% nossa. Existe um contexto, uma localização geográfica, uma inserção cultural e social, uma época, uma perspectiva etc que favorecem ou não atividades comunitárias e bens compartilhados.

2) Tampouco estou dizendo que para remediar a situação, quebrar o círculo, reduzir a importância do consumo e a sua naturalização como se fosse de fato parte “natural” da vida –e não apenas uma criação social e cultural de um dado momento histórico– seja preciso parar de consumir completamente. Neste momento, no mundo em que vivo, consumir é parte essencial da vida, goste-se mais ou goste-se menos disso. E há muitíssimas “camadas” de consumo. Comprar feijão pra matar a fome é muitíssimo diferente de gastar pequenas fortunas em carros esportivos. Há o consumo. E há o consumismo. Que é bem outra coisa.

 

lindezas do argentino Decurgez (*)

lindezas do argentino Decurgez (*)

Mas é preciso –e possível e desejável e altamente prazeroso (porque prazer é essencial)– primeiro refletir sobre esse consumo. Depois reduzir esse consumo. E em terceiro –e aqui é onde a gente falha miseravelmente– promover cada vez mais espaços, situações e interações absolutamente não mediadas pelo consumo.

Passeios no parque são de graça, são comunitários, os “bens” estão lá para serem compartilhados. É uma coisa que minha família fez muito pouco até agora, mas que estamos mudando –e o movimento nesse sentido começou pouco antes da já mencionada primeira ida à biblioteca pública.

Praças, ruas, centros culturais estão aí pra serem ocupados, aproveitados, fruídos. E, sabe?, eu que sou louca por um café na rua, por sentar e tomar um chá num lugar agradável, preciso começar a refletir seriamente sobre como meu filho analisa e capta esse meu hábito. Podemos ir a um café ou tomar um suco na padaria (coisas que Enzo ama). Sim, é claro! Mas também podemos levar chá de casa (como já fizemos quando ele era bebê), frutas secas, biscoito caseiro e simplesmente ocupar um espaço público sem pagar nada pra ninguém.

Visitar amigos, parentes, pessoas queridas. Compartilhar mais refeições. A gente raramente faz isso, o que é péssimo, ainda mais com meu histórico de infância italiana na casa do avô napolitano, em que compartilhar refeições deliciosas era lei, era regra. E era das coisas mais afetuosas da vida!

Outro ponto fundamental: vou muito com meu filho a livrarias. Compro muitos livros pra ele. Na verdade, jamais neguei um livro sequer. E compro por conta própria vários de que gosto sem nem perguntar antes se ele “achou legal”. Como nunca pensei antes em levá-lo a uma biblioteca pública? Como ainda não tinha pensado em inscrevê-lo –e a mim também– em bibliotecas e programas de empréstimo de livros? Pra falar a verdade, essa nossa primeira ida a uma biblioteca foi absolutamente não proposital. Cruzamos com uma no caminho, achamos bacaninha e resolvemos entrar.

Penso, hoje, depois de meu filho ter revelado tão ingenuamente a naturalização do consumo que existe em mim, que é difícil, mas urgente, repensar muito mais do que apenas a superfície. É clichê, mas é verdade: sair da zona de conforto. Porque, sinceramente, não assistir a TV, não ter uma coleção de licenciados, não gastar dinheiro com as porcarias plásticas que piscam-deitam-rolam-e-tocam-música na loja da rede, privilegiar brinquedos artesanais, tudo isso me deixa absolutamente confortável. É um tipo de atitude política muito fácil pra mim por causa de uma série de preferências –estéticas até– e de uma série de convicções. Mas é limitada e serve muito mais como uma limpadora de consciências –a minha, no caso– do que de fato como uma alternativa ao consumo non stop em que se vive.

Prova disso eu tive no domingo.

No entanto, privilegiar de verdade o não-consumo e procurar reduzir de fato as atividades consumo-mediadas, aí sim, confesso, vai me incomodar, vai me desalojar, vai me confrontar. Porque a naturalização do consumo é minha também, não apenas da “sociedade”, essa entidade mística que a gente ama culpar, mas que não existe por si só. Há o grupo, mas há também responsabilidades pessoais e a nossa parcela de consentimento e omissão –ou não. E há coisas que definitivamente precisam ser desnaturalizadas. Porque meu filho não é target de publicitário ou indústria de brinquedos. Porque eu não sou público-alvo. Porque é preciso, cada vez mais, que as crianças –e nós adultos– sintam e percebam que há vida pra além do que pode ser pago, do que está a venda, do que pode ser possuído. Na verdade, talvez só haja vida aí, nesse lugar onde não é preciso ter nada. Porque todos somos.

Mais imagens sobre o talentoso artista argentino Guillermo Decurgez aqui ó.

Texto publicado anteriormente no blog materno Mãederna gentilmente cedido pela autora.

(*) Nat é mãe de Enzo, jornalista, paulistana e escreve no blog materno Mãederna.


Tags:  consumismo estilo de vida sociedade do consumo

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Mariana Sá




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