criança e mídia / 16 de abril de 2015

As marcas que a criança precisa se chamam brincar, criar, inventar e imaginar

Texto especial para o Milc de Patrícia L. Paione Grinfeld*

Quem circula pela cidade de São Paulo já deve ter se deparado com a propaganda do parque de diversões que reproduz uma cidade real em tamanho de gente pequena, que diz: “venha brincar do que você quer ser” (a publicidade também pode ser vista em banners em alguns sites e blogs).  Além da frase, há sempre uma criança (ou mais) com cara de feliz, vestida de médico, bombeiro, chef de cozinha ou outro profissional.

A frase é dúbia. De um lado é um convite para o público alvo – crianças entre 4 e 14 anos –experimentar ser o profissional que tem vontade de ser. De outro, ela transmite, mesmo que sutilmente, a mensagem que quem está de fora não brinca do que quer ser. Aqui mora um perigo.

Que o parque é impecável em seu atendimento e proporciona experiências extremamente positivas, isso é inegável. Seu mérito está exatamente no poder de encantar as crianças e seus responsáveis. Mas quando um espaço como este faz um sucesso enorme, especialmente entre os adultos – as crianças se encantam com coisas muito simples, desde que tenham a oportunidade de brincar livremente – é preciso pensar o quanto ele cria demanda e o quanto ele atende a uma demanda de nossa sociedade.

O parque vende, através do brincar, “um ambiente seguro, único, realista e educacional”. “Através de cada brincadeira e atividade, as crianças aprendem sobre o funcionamento da sociedade, educação financeira, trabalho em equipe, autoestima e habilidades da vida real”.

Que as crianças aprendem brincando, não é nenhuma novidade. Na brincadeira, a criança mergulha no faz de conta, transitando entre o mundo imaginário e o mundo real. Essa é a grande sacada do parque no que se refere ao brincar – juntar realidade com fantasia.

Para aprender brincando, a criança precisa de um ambiente social e emocionalmente seguro. Para algumas crianças, no entanto, a segurança física não é suficiente para que o brincar flua com naturalidade, e assim, se torne uma experiência prazerosa e de aprendizagem. Essas crianças precisam de um vínculo de confiança para se sentirem seguras, mesmo num ambiente encantador – 5 horas não é tempo que garante a construção desse vínculo, ainda mais com tantos monitores diferentes. Esta é, ao meu ver, uma das grandes diferenças entre um espaço como este e os espaços mais intimistas que têm o brincar e o aprender como propostas fundantes do trabalho.

Para aprender brincando a criança não precisa de brinquedos ou espaços sofisticados; precisa apenas estar livre para criar, inventar e imaginar, sozinha e com outras crianças. Quando a brincadeira vem dada, a criança pode aprender, pode se divertir, pode ser criativa; pode – às vezes – fazer a escolha de participar ou não da brincadeira. Porém, isso não é livre brincar, engendrado pela espontaneidade e singularidade de cada criança. Este é um brincar que vem de uma oferta, de algo pronto e pré-definido como interessante, útil, imprescindível. É um brincar que repete a lógica do mercado.

Poder brincar em tudo, consumir o que quiser, alimenta nosso desejo mais primitivo de se sentir preenchido, completo, potente. É o que o cartão de crédito, a compra por impulso, o consumismo, confere a tantos de nós. Neste sentido, o parque ensina muitíssimo bem – porque compactua com – o funcionamento de nossa sociedade.

O parque é único – em seu tamanho, sofisticação e inclusão de marcas mediando as brincadeiras – e deveras audacioso. Educação financeira, trabalho em equipe, autoestima e habilidades da vida real são aprendizados complexos e contínuos, envolvem múltiplos agentes e circulação pela cidade.

Lembro-me do relato de uma babá que dizia que o menino que ela cuidava, na época com uns 5 anos, sempre que andava nas calçadas, tropeçava. Na sua leitura isso acontecia porque ele só andava de carro, e por isso não aprendera a caminhar na via pública.

As cidades cresceram e os muros que antes a cercavam no seu entorno, passaram a cercar seus habitantes. Cada vez mais confinadas em seu microcosmo, as crianças estão sendo submetidas ao brincar que lhe é ofertado (as atividades extraescolares são um exemplo disso), distanciando-se cada vez mais do livre brincar, o brincar que a faz cidadã, sujeito de direitos, deveres e escolhas.

Que a criança brinque numa cidade fictícia, ok. Mas quando a criança precisa de uma cidade fictícia para brincar e aprender sobre o funcionamento da sociedade, educação financeira, trabalho em equipe, autoestima e habilidades da vida real, é bom parar, pensar, rever e reinventar formas de circulação na cidade única e real, muitas vezes insegura e com pouca educação, que cada um de nós vive.

A criança precisa do mundo real para aprender e crescer. O mundo real está nas ruas. A criança não precisa de marcas mediando suas brincadeiras para aprender. Quem precisa das marcas é o empreendimento (caso contrário ele não se sustenta). Quem precisa das crianças são as marcas (que têm nas crianças seu consumidor potencial). As marcas que a criança precisa se chamam brincar, criar, inventar e imaginar. Isso o dinheiro não compra (nem manda buscar).

(*) Patrícia mora em São Paulo, é psicóloga e 2x mãe. Por acreditar que pequenas atitudes podem ser transformadoras, faz seu trabalho de formiguinha na vida e na profissão. É idealizadora do blog Ninguém cresce sozinho e nunca acreditou tanto na importância do trabalho do MILC quando, ao ler “Bruxa, Bruxa, venha à minha festa” para um grupo de crianças entre 2 e 8 anos, uma menina com 3 disse: “Olha a Barbie”, apontando para a chapeuzinho vermelho da história. www.ninguemcrescesozinho.com


Tags:  brincar brincar livre fidelização marcas marketing merchandising parque product placement

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Mariana Sá




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