Texto especial para o Milc de Larissa Gandolfo e Mariana Desimone*
Nós da Oficina de Desprincesamento acreditamos muito mesmo na experiência que pensamos em oferecer para as nossas meninas. Isso porque acreditamos ser importante oferecer algo de diferente para elas, se quisermos mudar o panorama da nossa sociedade no futuro. Não queremos que nossas filhas e filhos vivam em uma sociedade como a nossa, em que uma mulher é abusada a cada onze minutos. E acreditamos que você também não quer. Fizemos essa oficina numa tentativa (hercúlea e as vezes megalomaníaca, eu sei) de mudar um pouco os horizontes as meninas. Mostrar a elas que são inteligentes, especiais, incríveis. Fortes! Criativas. E também que não precisam se encaixar em nenhum padrão.
Como percebemos que ainda há algumas dúvidas sobre a oficina de desprincesamento, fizemos um “perguntas e respostas” especial para as leitoras e leitores do Milc, já que nos baseamos nos comentários deixados pelos leitores no último post sobre o assunto.
- “Minha filha é princesa, sim. Qual o problema?”
Como já foi pontuado aqui no Milc, você não é obrigada a nada! Não é da minha alçada vir aqui e dizer que você tem que fazer assim ou assado na criação da sua filha. O que eu trago, sim, é um convite para a reflexão. Você acha que inserindo a sua filha nessa “realidade” de que ser princesa é o máximo, é tudo o que uma menina quer, você está dando as asas que ela precisa para voar e ser uma mulher completa, a escolha é sua. É você quem estará sempre ao lado da sua filha.
Mas talvez aqui caiba a reflexão: sua filha é princesa por vontade dela, ou porque nenhum outro modelo lhe foi apresentado? Observe os brinquedos, os filmes, as referências que estão sendo oferecidas à sua criança. Ela é princesa, ok. Mas ela teve a chance de ser qualquer outra coisa? E se não teve, quem escolheu ser princesa: ela, você, a sociedade? O problema não está em ser princesa, e sim em isso ser uma imposição social.
- Agora não pode mais ser princesa. Que ditadura!
A ditadura é por definição um regime de governo onde a liberdade individual está cerceada ou limitada. Dessa forma, apresentar novo modelos nunca poderá ser uma ditadura. Muito pelo contrário. Em nenhum momento escrevemos ou iremos escrever “não pode”, a não ser “não pode tirar a liberdade de ninguém”. Se a menina escolheu, livremente, após a apresentação de diferentes modelos e possibilidades do feminino, ser princesa, que assim seja, pois essa é a expressão do seu ser, e não a massificação de uma cultura imposta.
- Por que não se ocupam de coisas mais importantes, como cuidar de crianças que sofreram abusos?
Nosso ponto de partida para o desenvolvimento da nossa oficina, foi justamente a Oficina de Desprincesamento em Iquique. Ela foi criada, justamente, para evitar que meninas que estavam em uma situação desfavorável fossem vítimas de abusos.
A cidade chilena sofreu com um terremoto em 2014 e as famílias tiveram que ser removidas dali. Foram criados “bairros de emergência” para acolher essas famílias. Nesses locais sem muita infraestrutura, a prefeitura e as agências ligadas aos direitos da criança desenvolveram o “taller de desprincesamiento”, justamente para fortalecer a autoestima das meninas e evitar que fossem vítimas de abusos.
E tão importante quanto cuidar das vítimas é cuidar para que o número de vítimas diminua ao longo do tempo.
Em uma sociedade em que ensinamos os meninos a serem violentos, oferencendo “lutinhas”, “espada”, “armas” e incentivando a força, e oferecemos às meninas a “fragilidade”, a “delicadeza”, a “docilidade”, não podemos esperar muito mais do que o assombroso quadro de violência contra a mulher que temos hoje no Brasil. Mostrar às meninas que a fragilidade e docilidade da princesa pode representar um perigo em diferentes situações da sua vida é importante para preparar nossas crianças para essa triste realidade que buscamos transformar.
- Qual o problema de meninas ou mulheres gostarem de princesas, de filmes de princesas?
Não há problema algum em gostar do tema. Afinal, ele é bastante recorrente na nossa cultura. O que nós buscamos é tentar separar essa fantasia da realidade. É muito legal brincar e “fazer de conta”, isso faz parte do desenvolvimento cognitivo das crianças. Por outro lado, incutir na cabeça das meninas que elas devem “se guardar para o príncipe encantado”, isso pode não terminar tão bem. E se ela não quiser casar, por exemplo? E se ela não se identificar com essa temática da princesa? Nossa vontade é mostrar que devemos dar mais opções para as meninas, apenas isso.
- Por que incomoda tanto uma menina ter bons modos, ser feminina?
Para nós não há nenhum problema crianças em geral terem bons modos. É, afinal, um trabalho árduo que nós, mães e pais tentamos, dia após dia, ensinar aos pequenos. Achamos, porém, que bons modos são para todos, e não só para meninas. Muito menos apenas para “princesas”. Ser feminina é uma construção social de um determinado tempo histórico e local. Ser feminina na Idade Média poderia, por exemplo, levar uma mulher a ser queimada viva. Em alguns países ainda hoje, uma mulher que sorria e se mova com os traços delicados da Cinderela ou da Branca de Neve pode ter seus dentes quebrados à marteladas pelo marido. O que significa ser feminina?
É ser vaidosa? Até que ponto a vaidade das meninas não é incentivada pelos apelos de consumo de produtos estéticos? É falar baixo? Até que ponto a voz da mulher deve ser baixa para não encobrir a opinião (ou os mandos) do “homem da casa”? Essas práticas arcaicas fruto do patriarcado que fere a todas nós estão sendo colocadas como o arauto da feminilidade por pessoas que simplesmente não refletiram sobre o que significa ser mulher em 2016 no Brasil. Precisamos urgentemente repensar esse conceito de feminilidade se quisermos falar sobre igualdade de oportunidades para os gêneros, se quisermos diminuir o número de vítimas de estupro na infância (e na vida adulta) e se quisermos um dia vislumbrar um mundo onde não precisaremos de uma lei como a Maria da Penha.
- Que forçação de barra, hein?
Para nós, para nós “forçação de barra” é ensinar as meninas que o trabalho de casa cabe apenas a elas, e que elas devem ser dóceis e submissas. Em uma sociedade como a nossa, em que uma mulher sofre algum tipo de abuso a cada ONZE minutos, não seria melhor apostar na autoestima das nossas meninas? Mostrar-lhes que o melhor é confiarem em si mesmas, nas suas potencialidades? Que já são seres completos?
Essa tipo de expressão tende a observar as lutas pelos diretos como “mimimi”. Esse argumento ou comentário é vazio mas bem recorrente, pois representa a alienação daqueles que no fundo não percebem a urgência da igualdade porque não se sentem oprimidos por aquilo que apontamos como um problema.
No geral essas pessoas ou ocupam o lugar dos opressores, ou são os oprimidos hospedeiros: pessoas que buscam diminuir a luta alheia por que não se reconhecem nela. O que é preciso entender é que a questão de gênero é uma questão que permeia praticamente todos os debates sociais, e ninguém sairá ileso, pois, cedo ou tarde, precisa enfrentar essa questão se quiser compreender-se e compreender a sociedade em que está inserido.
As tensões de poder nesse quesito tendem a se acirrar cada vez mais a medida que as mulheres conquistem seus direitos (e não privilégios como muitos querem ver, por comodismo ou por falta de caráter). Se informar antes de emitir opiniões é essencial.
- E pode ser princesa também?
PODE! Pode ser princesa sim, se quiser. Nossa ideia é questionar muito o que as meninas acham que é ser menina.
(*) Larissa é mestre em filosofia da educação, professora de filosofia e curiosa em várias áreas e Mariana é jornalista, mãe de Nicolas, 6, e Letícia, 4. Aprendiz de yogini e viciada em séries. Ambas resolveram encarar o desafio de trazer a oficina de desprincesamento do Chile direto para o Brasil.
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