* Texto de Vanessa Anacleto, especial para o Milc
Quando falamos sobre publicidade infantil e seus efeitos negativos sobre as crianças não somos muito bem recebidos pelos ouvidos de quem vive das vendas. Nem esperamos o contrário. Afinal, quando a propaganda fala diretamente com a criança, vender é muito mais rápido e eficiente. Quantas vezes nós adultos compramos coisas que não precisamos por causa de um anúncio com apelo interessante? Se nós, que já conhecemos melhor as regras do jogo, escorregamos tantas vezes, com as crianças, já tão cedo assediadas pela indústria, é muito pior.
É perverso modificar a criança a partir do comportamento do anunciante. Pelo contrário, o papel da sociedade consiste em mudar a propaganda para preservar a infância. Em nossa escala de valores as crianças valem mais que os produtos anunciados. Já no incrível mundo da defesa da publicidade infantil vale qualquer argumento furado.
Listamos alguns:
1- Olha só quem fala
Quando ouvimos alguém dos anunciantes falando sobre publicidade e começando com: “Eu também sou mãe, sou pai, sou avô ou avó”, achamos até divertido. Nós nunca pensamos nos anunciantes como Ebenezer Scrooge, solitários em suas mansões, longe de tudo e de todos, pensando somente nos rendimentos. São, certamente, todos indivíduos com relações de afeto e responsabilidade com os seus e isso não tem nada a ver com os negócios. Acontece que quando falam sobre seus interesses comerciais, colocando-os acima dos interesses das famílias em geral, perdem o lugar de fala que defendem possuir. Não é possível falar por si, então falam pela corporação fazendo de conta que falam por si.
Anunciante fala como anunciante. Ele poderá ser um anunciante mais comprometido com os anseios da sociedade de acordo com sua visão do mercado e do mundo e, quando isso ocorrer, possivelmente mudará também o discurso. Um anunciante que fale como mãe, pai ou avô, mesmo, de verdade, não vai dizer pra você comer no restaurante do palhaço uma vez por mês pra garantir a roda girando. Ele vai pensar em outra saída.
2- Infantilização dos pais
Ao mesmo tempo que adultiza crianças, queimando etapas de desenvolvimento para poder vender sempre mais e mais, o discurso do mercado infantiliza os adultos. Tratando-nos como incapazes de criar nossos filhos, pessoas perdidas buscando sempre dicas dos especialistas em vendas para educar, o defensor da publicidade infantil nos faz sentir como crianças de 3 anos. Com sono.
3- Proibir é uma palavra assustadora, vamos pelo “caminho do meio”, eles dizem
Achamos até bonitinho ver O caminho do meio, conceito ligado ao Budismo, e está relacionado à busca de equilíbrio na vida diária sendo usado pelos defensores da publicidade infantil. Em contraponto a este equilíbrio do anunciante estamos nós, “os radicais”, que vemos nesse exagero de apelo comercial mais prejuízo que vantagem para a criança.
Muito bem, digamos que seja possível caminhar pelo meio entre total assédio da indústria e total proteção. Onde fica exatamente esse meio de caminho? Para o defensor da publicidade infantil o meio do caminho está onde for possível deixar a propaganda liberada e os pais devem se virar para evitar comprar tudo o que o filho pede depois. A criança precisa ser educada para a, e apesar da, publicidade infantil como se nos dissessem: ” Prendam suas crianças que eu vou soltar a minha propaganda!”
Nosso meio de caminho fica bem mais adiante. Crianças precisam de liberdade. Não liberdade para escolher bens de consumo. Crianças precisar de liberdade para brincar, liberdade para ser criança e experimentar o mundo protegida dos conceitos e valores de consumo impostos pela mídia. Produtos de cores diferentes para meninos e meninas, brinquedos que brincam sozinhos e servem só para olhar, aqueles colecionáveis de uma coleção que a criança jamais conseguirá terminar, produtos infantis criados para conferir valor e status a criança em seu meio social estão bem longe do que entendemos por equilíbrio.
4- Proibir é uma palavra assustadora, preferimos regulamentação, eles dizem
Proibir é uma palavra assustadora. Por isso você vai encontrá-la muitas vezes na fala do anunciante e sempre seremos acusados de querer proibição. Ao contrário, nossa luta é pela regulação da publicidade. Lutamos para que a linha do que deve ser regulado, o que é ou não abusivo, deixe de ser delimitada pelo próprio anunciante como ainda ocorre no Brasil. O uso de personagens queridos da criançada e investimento em estratégias de especialistas em comportamento sendo utilizados para levar uma criança a acreditar que será mais querida ou feliz se obtiver determinado bem de consumo é o que assusta de verdade.
5- Crianças são multitarefas e a eletrônica está no seu DNA, eles dizem
Crianças de hoje não são multitarefas, elas vivem num mundo multitarefas. Não está no DNA delas o touch screen e os novos gadgets. Crianças de hoje vivem seu tempo e estão adaptadas a seu tempo. No DNA, código genético de nossas crianças, está a aptidão para criar e explorar o mundo como fizeram seus antepassados, criando soluções a partir dos problemas de cada geração. Foi assim que chegamos até aqui. Não pensemos que nossos filhos são gênios porque usam o smartphone melhor que nós. Eles são crianças, especiais e únicas, pequenos pacotes de maravilhas, crianças do seu tempo que usam os instrumentos de seu tempo. Albert Einstein era um gênio, fez grandes coisas pela humanidade, jamais viu um ipad. Com um computador, Einstein hoje provavelmente faria alguns cálculos mais rápido e imprimiria a teoria da relatividade em uma impresora wi-fi . As ideias que mudam o mundo porém, vem do gênio humano, não do instrumento com bateria de lítio.
6- Não precisamos regulamentar a publicidade porque já melhoramos muito. Publicidade educa as crianças, eles dizem.
Muito não é o suficiente. Ainda que se comemore cada passo dos anunciantes no sentido de refletirem sobre sua prática mercadológica ainda há muito o que caminhar. Quando pararem de entregar brinquedos junto com lanches estimulando maus hábitos alimentares, podem nos chamar para conversar sobre isso. Publicidade com finalidade educativa não tem fim de mercado. E publicidade sem fim de mercado é algo muito raro na mídia. Não se educa com intenção de lucro puro e simples, o que se faz é vender usando educação como desculpa.
Por outro lado, quando o tema é deseducar, a publicidade ganha de lavada. Mudando hábitos há décadas, a publicidade infantil está de parabéns ao incentivar a alimentação não adequada, algo impossível de reparar com uma frutinha de personagem licenciado. Alimentação saudável é hábito diário, muito mais que consumir um único tipo de fruta e não interessa à publicidade por não ser ultraprossessada.
Se a publicidade infantil realmente tivesse a missão de educar, se houvesse mesmo preocupação tão nobre, já teria começado eliminando a desserviço prestado pela publicidade de alimentos. Diante desta impossibilidade, senhores, continuem apenas anunciando. Anunciem para adultos. É mais difícil, nós sabemos. Mas, a Infância vale o esforço.
Argumentos furados a favor da publicidade infantil é uma série. Leia também:
Argumentos furados a favor da publicidade infantil parte 1
Argumentos furados a favor da publicidade infantil parte 2
Argumentos furados a favor da publicidade infantil parte 3
* Vanessa Anacleto é autora do livro Culpa de Mãe, escreve no Mãe é tudo igual e é co-fundadora do Movimento Infância Livre de Consumismo e não trabalha pra indústria.
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