Comida é comida. Brinquedo é brinquedo. Livro é livro. Gibi é gibi. Personagens não deveriam estar associados ao ato de comer. Misturar as coisas é perigoso. É consumismo. É tentativa de adestramento para a leitura e também para a alimentação.
Da mesma forma que sobremesa e brinquedinhos não devem ser oferecidos como recompensa para a criança que come, produtos de qualidade duvidosa não devem ser a recompensa para a leitura.
A recompensa da leitura é a ativação da imaginação, é o sorriso, o sonho, a viagem que se faz quando se mergulha em história lidas (e não encenadas). É um prazer diferente, altamente compensatório. Ler é bom. Ler se aprende lendo. De tudo. Sempre.
A recompensa por comer é o comer em si. Uma criança que precisa de distrações e recompensas para se alimentar bem está desenvolvendo um problema. A gente come quando está com fome e deve poder escolher aquilo que mais apetece. A criança deve ter o direito de ter no prato variedade e aquilo que gosta. Existe tanta comida boa no mundo, não há porque disfarçar alimentos que a criança não gosta ou distrai-las e enfiar aquilo que decidimos que ela tem de comer “goela abaixo”.
Criança saudável, com fome, com o que gosta no prato – salvo exceções – come. Criança que não se apetece com nada de bom, que se atrai apenas com doces ou alimentos pastosos, gordurosos, fritos ou ultraprocessados merece atenção e deve ser avaliada junto à sua família sobre estes hábitos, cujo preço ela vai pagar mais tarde (ou mais cedo que se imagina).
Dito isso, é óbvio que estimular o prazer da leitura associado ao risco de doenças crônicas não é mesmo o que buscamos. É?
Ler é, e deveria continuar sendo, um hábito saudável em si.
Se a gente não gosta quando tentam vender comida boa com personagem para os nossos filhos, é óbvio que não aprovamos produto ruim com brinde supostamente bom.
Quer um gibi? Vá à banca de revista. Quer um livro? Vá à livraria! Aliás, são estabelecimentos que podem acabar a qualquer momento.
Quer hamburger? Procure ir a um estabelecimento local que cuida melhor dos ingredientes.
Ao final e ao cabo, achamos uma baita sacanagem a corporação que já é uma das maiores vendedoras de brinquedos do mundo entrar no nicho da leitura também.
O livro e o gibi têm seu valor. Na livraria, banca, na biblioteca, na gibiteca, em cirandas e troca na escola, naquele tempo na sala de aula quando acabou a atividade.
Risadas, conhecimento, leitura, sim. Diabetes, Hipertensão, leitura, não.
A novidade é ver uma propaganda da mais emblemática rede de fast food com blogueira/youtubber materna vendendo livro do mais famoso empresário de quadrinhos sem fazer qualquer menção às marcas e ao lanche. Ela fala “espontaneamente” da sua vivência como leitora desde a infância. Ela está numa sala da rede. Ela retira o tal livro de uma embalagem com a marca da rede. E não conta que o livro vem de brinde com um lanche infantil. Ela não fala da marca. Ela não fala do lanche. Mas está tudo lá, nas entrelinhas.
Agora que ela colocou dessa forma, você sente que está liberado para oferecer produtos de qualidade duvidosa para seu filho?
Nós não! Com brinquedo ou com livro, continuamos achando “abusivo tudo isso” e mantemos nosso estado de boicote a esse estabelecimento (entre outros).
Supostamente que a propaganda é feita para os adultos, para as mães, com quem a blogueira-youtubber fala, mas fornece também argumento para a criança pedir (nag factor). Sabemos que quem decide é a mãe (e às vezes o pai), mas estamos fazendo esse alerta para você ver até onde uma empresa vai para vender mais lanche porcaria.
Acredite, não tem nada a ver com leitura.
Que a leitura é fundamental, que o Brasil tem déficit de leitura todo mundo sabe, que a nossa geração foi alfabetizada por gibi também. Mas todas essas boas intenções não são suficientes.
Agora, vamos ser sinceras: quer dar fast food? Dê.
Nem precisa ficar com sentimento de culpa. Mas dê consciente de que é ruim para a saúde, para o planeta, para a economia local. Ninguém vai morrer comendo uma porcaria de vez em quando. O filho é seu, o dinheiro também, ninguém vai te processar, quanto menos julgar.
Dê a porcaria do lanche se você achar que vale a pena! Mas, por favor, não caia na cilada de que é por uma boa intenção destes caras. Eles estão pouco se lixando para a leitura. Eles querem é MAIS grana.
P.S. Sim, somos chatas e reclamamos de tudo. Há 7 anos estamos por aqui fazendo “mimimi” e arrumando treta sobre a publicidade infantil. Neste meio tempo algumas coisas mudaram e, sabem de uma coisa? Nós ajudamos a mudar. Não vamos desistir.
(*) Debora Regina Magalhães Diniz é mãe de três, professora, doula e educadora perinatal. Cursou Letras e Semiótica. É cofundadora do Milc – Movimento Infância Livre de Consumismo, uma das coordenadoras da Roda Bebedubem. É ativista e implicante com a sociedade atual desde sempre.
(*) Mariana Sá é mãe de dois, publicitária e mestre em políticas públicas. É cofundadora do Milc. Mariana faz regulação de publicidade em casa desde que a mais velha nasceu e acredita que um país sério deve priorizar a infância, o que – entre outras coisas – significa disciplinar o mercado em relação aos direitos das crianças.
(*) Vanessa Anacleto é mãe do Ernesto, blogueira e autora do livro Culpa de mãe. Por causa disso tudo, ajudou a fundar o Milc e luta por um futuro sem publicidade infantil. É autora do blog materno Mãe é Tudo Igual.
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