livros e filmes / 9 de julho de 2014

Afinal, do que precisa uma criança?

Texto de Mirtes Aquino*

Outro dia estava em uma roda de mães e a conversa enveredou para enxoval de recém-nascido, lista de compras e viagens de compras ao exterior. Senti-me quase uma avó ao constatar o quanto o enxoval que montei para minha filha, há inacreditavelmente distantes 8 anos, está ultrapassado!!! Dos modelos de carrinho e bebê-conforto a tecnologia das fraldas, do estilo das roupas a decoração do quarto, dos itens mais supérfluos aos ditos “essenciais”. As crianças continuam nascendo com as mesmas necessidades e questões, mas a forma de atendê-las parece que precisa ser revista e mudada numa velocidade cada vez maior.

E a coisa cresce junto com a criança! E em pouco tempo as necessidades do seu pequeno já se agigantaram diante dele. Roupas e sapatos que as crianças, muitas vezes, sequer conseguem usar! Não dá tempo. Ou simplesmente não há interesse. Com os brinquedos é um mundo a parte.

As meninas precisam ter um espaço estrategicamente reservado no quarto para as infinitas barbies, pollys e monstrinhas, e seus acessórios sem fim. Os meninos, por sua vez, precisam guardar seus carros colecionáveis e dezenas de pistas ineficientes. E os jogos, e os brinquedos de montar, musicais e de aventura. As fantasias de princesas e super-heróis, e seus muitos acessórios, claro.

Brinquedos pra praia, pra piscina, pra escola, pro parquinho, pra viagem, pro apartamento. Brinquedos pro quarto da criança, pra casa dos avós, pra casa de praia, pra deixar no carro. Brinquedos pros dias frios, pros dias quentes, pros dias de férias, pros dias super ocupados, pros dias de tédio.

A sensação que se tem é que uma infância é bem vivida na medida em que consegue juntar itens e tralhas. Mas, com raríssimas exceções, o encanto de cada novo item dura o tempo de um item ainda mais novo chegar – muitas vezes nem isso. E as coisas se acumulam, se entulham, e a criança se distancia cada vez mais do que realmente ela precisa. Mas afinal, de que uma criança precisa?

Por mais óbvia que esta pergunta seja, sua resposta parece ser cada vez mais difícil de ser vivida – não necessariamente dita. Podemos repetir que não são itens materiais a resposta, mas nossos atos nos desmentem. E caímos na pegadinha da mídia, que de forma fascinante ou emocionante, nos induz a pensar que as maiores provas de amor devem sim, ser pagas pelo cartão de crédito. E quanto mais a pilha de tralha cresce, mais se tem certeza de quanto amor está envolvido.

E no meio de tanta coisa, como conseguir pensar no que realmente é necessário?

Foi assim que aconteceu com o menino idealizado pelo genial Shel Silverstein em Uma girafa e tanto. Ele tinha uma girafa, mas queria ter uma girafa e tanto, e não mediu esforços para isso: chapéu com rato, rosa no nariz, uma cadeia como pente, uma bicicleta de pneu furado.

Com estilo nonsense, o personagem vai atrelando a sua girafa toda sorte de tralha, até ser quase impossível reconhecê-la. E no meio de tanta coisa, como saber o que realmente é importante? Ahhá!!! Mas no meio do caminho da girafa havia um buraco de tatu, que com tanta coisa foi impossível ver. E ao cair lá dentro, caem também todas as tralhas, e é então… poxa, que o menino percebe que já tem uma girafa e tanto, sem precisar de tralha alguma.

E é aí que começa a parte mais divertida, encontrar destino para tanta tralha! A cadeira é dada a um urso, a rosa a uma pessoa amada, e o rato simplesmente vai embora com o chapéu.

O livro é todo em preto e branco, da capa às folhas internas, ilustrado pelo traço inconfundível de Shel Silverstein, o que, convenhamos, não o torna dos mais atraentes. Mas não se engane, ele é surpreendente, e é uma ótima e divertida forma de conversar com as crianças sobre o que é essencial e o que é supérfluo, o que é consumo e o que é consumismo – sobre o que realmente precisamos carregar e o que podemos, simplesmente, deixar seguir outro rumo.

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Nota da editora: leia mais sobre enxoval aqui.

(*) Mirtes é a mãe da Letícia, além de economista e funcionária pública. Desde que se tornou mãe aprende que é possível construir um mundo melhor, o que necessariamente passa por uma infância mais respeitada. Escreve no Cachinhos Leitores, seu blog sobre literatura infantil. http://www.cachinhosleitores.blogspot.com


Tags:  brinquedos consumismo consumo consumo infantil supérfluo

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Mariana Sá




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