Texto de Ligia Moreira Sena*
Minha filha e eu saímos hoje para, entre outras coisas, comprar uma bota de borracha para dias de chuva. Eu já sabia onde encontraria uma sem personagens, sem divulgação, sem licenciamentos que vão viciando a criança. É caneta da tal da personagem, é jogo da tal da personagem, é gente que incentiva isso, é você que dá dois passos pra frente e o povo que faz questão de atrapalhar e dar três passos pra trás… Lutar contra o licenciamento de produtos com personagens já é difícil. Imagina lutar contra a influência de pessoas que estimulam isso…
Mas estávamos lá na tal loja e encontramos a bota, nas cores preta, roxa e rosa. Clara ficou em dúvida entre a preta e a rosa. Por fim, escolheu a rosa. Eu dificilmente compro coisas cor de rosa para ela. Nada contra quem compra, apenas fiz a escolha de explorar diferentes cores, de variar bastante, de não fortalecer a dicotomia rosa-azul que a sociedade por si só já faz excessivamente. Ela não tem um quarto cor de rosa nem nunca teve, pelo contrário. Seu quarto já foi vermelho e branco e hoje é azul, com nuvens e céu estrelado. E embora eu lute bastante contra o sexismo das cores na infância, já tive que explicar inúmeras vezes para ela que rosa não é cor de menina e que azul não é cor de menino – o imenso poder da convivência com outras crianças que são estimuladas e incentivadas a pensar assim… E olha que ela tem apenas 4 anos e não é escolarizada… Quando ela ainda era muito pequena e era eu quem escolhia todas as suas coisas, geralmente escolhia cores diversas. Hoje, que ela faz suas próprias escolhas dentro de algumas opções que ofereço, não a impeço de escolher algo rosa se assim ela quiser, respeito sua vontade. E foi assim que, hoje, ela escolheu uma botinha cor de rosa.
Fomos ao caixa para pagá-la. Clara entregou as botinhas à moça que nos atenderia para o pagamento. A moça, em tom muito gentil, dirigiu-se a ela:
– Linda a sua botinha! E é da cor das princesas!
Foi como se todo meu trabalho de ter ido até ali porque eu sabia que encontraríamos botinhas sem personagens tivesse ido para o fundo da privada. Foi assim mesmo que eu me senti: como se um balde de cocô tivesse sido despejado sobre minhas intenções. Foi visível meu desconforto. Fiquei olhando para aquela atendente, que estava tratando minha filha de maneira tão gentil e carinhosa, e vi claramente o tamanho do problema: não era uma questão de má educação, ou de antipatia, nada disso. Ali estava uma moça crente de que estava fazendo o melhor por uma criança, com gentileza e empatia. Mas que estava completamente envolta naquilo que o senso comum propaga, reforça, que a mídia macera todos os dias no interior das mentes que se deixam macerar…
Desanimei. Decidi não falar nada.
E foi quando aconteceu.
– Não, não é da cor de princesas – Clara dizendo…
– Não é?
– Não. É “da cor de rosa” porque eu achei mais bonita. Eu gostei de duas, da preta e da rosa. Mas preferi a “da cor de rosa” porque essa que eu estou – e levanta a perna – é azul com amarelo e eu gosto de coisas muito coloridas e preta não é tão colorida assim.
Eu quieta. Meio em choque. Aguardando ansiosa o desenrolar.
– É verdade, você tem razão. Como é o seu nome?
– Meu nome é Clara – Ela ainda não consegue falar o ERRE direito, enrola um pouco a língua, então às vezes as pessoas não entendem.
– Como? – perguntou a moça.
– Cla-ra. Clara. Como a do ovo, sabe?
A atendente riu gostoso.
– Eu sabia que você ia gostar – e Clara também riu – Todo mundo gosta quando eu digo isso e eu acho legal dizer, porque é quando as pessoas entendem.
Eu ali. Em modo paralisia.
– Você não gosta de princesas, Clara?
– Gosto. Elas são legais. Conheço algumas.
– Quais você conhece?
– Conheço a Elsa, a Ana [eu sabia, eu sabia que ia chegar nelas, tudo nessa vida parece levar a Elsa e Ana, não se passa um dia nesta minha vida de mãe que não se fale em Elsa e Ana – essa era eu pensando]. E outro dia eu pedi pra minha mãe e ela me levou no cinema pra assistir Cinderela.
– Nossa! A Cinderela é muito linda naquele filme né?
– Ah, ela é. Tadinha, vive toda suja…
– Você gostou do sapatinho dela?
– Sim.
– E do vestido?
– Sim.
– E do príncipe?
– Sim – [eu já querendo devolver a bota e sair correndo…]. Mas eu gostei de uma coisa mais ainda.
– Do que você gostou mais?
– Do que ela sempre diz – e encenou com os bracinhos: “Todas as pessoas precisam sempre ter coragem e gentileza”.
A moça se virou para mim e elogiou minha filha, dizendo algo como: “Puxa, que menina esperta, que menina inteligente”. Eu estava meio emocionada… Confesso. Com aquele sorriso meio espremido que esconde os dentes mas mostra que você está sorrindo. E disse, cordialmente, à atendente: “Diz pra ela isso…”. E ela:
– Clara, você é uma menina muito inteligente.
– Eu sei, obrigada. Minha mãe sempre me diz.
Quando todo aquele diálogo começou, naquele momento da sensação do cocô escorrendo na minha cabeça, eu já me via pagando a bota, indo para o carro com minha filha, colocando-a na cadeirinha, pedindo para esperar a mamãe um segundinho, voltando e explicando para a atendente porque aquilo não era legal de ser feito e blá blá blá e tome discurso e tome explicação e tome mais blá blá blá. Mas acontece que não precisou. Não precisou porque minha filha, de 4 anos, já interiorizou os valores que eu tanto a estimulo a ter, que eu tanto prezo, pela qual tanto luto, e que é tão difícil de vingar num mundo “licenciado” – em todas as acepções possíveis – como o nosso. Senti-me orgulhosa e feliz mas, principalmente, senti-me descansada. Essa é a palavra: descansada. Clara está na luta também. E isso aconteceu muito cedo e de maneira muito natural.
Por fim, gostaria de falar sobre as princesas.
Eu sou a chata das princesas. Muito, muito chata. E, olha, não é por seus lindos vestidos e cabelos maravilhosos – eu realmente as acho lindas, quase tive um troço quando me apareceu aquela Cinderela com aquele vestido translumbrante, azul turquesa, royal, sei lá que azul é aquele, com borboletas, coisa mais linda de viver, na telona do cinema. Eu não gosto das princesas pelo tipo de valores que elas representam. Mas tenho percebido algo: talvez não seja pelos “valores que elas representam”. Mas pelos valores que a sociedade QUER E INCENTIVA que elas representem. Essa coisa deletéria e prejudicial de se estimular a crença em príncipe encantado, de se ter modos de menina (que fucking modos de menina?!), de ser meiga como condição sine qua non para a condição de ser mulher, essa coisa que se associa a uma condição feminina estereotipada e vulnerabilizada. E, também, pelo massacre princezóide que se faz sobre as meninas. E pela associação rosa-princesa, claro, não vou mentir. Ou seja, não são as princesas. É a sociedade. Somos nós. É a cabeça das pessoas que incentivam esse tipo de (des)valor. Porque numa casa onde isso não é valorizado, onde isso não é incentivado, onde se combate veementemente esse tipo de estereotipia, o que uma menina de 4 anos guardou de um filme como Cinderela não foi o fato do príncipe dar uma festa pra escolher mulher. Não foi o fato das mulheres do reino disputarem um homem. Foi uma coisa só: a importância da coragem e da gentileza para todas as pessoas.
Desde que eu a levei para assistir Cinderela, tenho refletido sobre isso. Sobre o que, de fato, essas princesas viveram em suas histórias fictícias de contos de fadas e o que é que a sociedade gosta de falar sobre elas. Penso na princesa Aurora e no amor verdadeiro de sua mãe adotiva, Malévola. Penso na Branca de Neve, que foi beijada sem seu consentimento estando desacordada. Penso na Valente, com seus incríveis cachos vermelhos. Penso na Astrid (que nem princesa era) domando dragões. E, tá bom, sim, eu também penso na Elsa e na Ana: irmãs com um amor profundo uma pela outra.
O problema não são as princesas.
O problema é o uso que se faz dessas personagens. Um uso que beira o controle e a doutrinação.
Quando a gente cria crianças fora desse contexto, elas não se deixam controlar nem doutrinar. A ponto de que o que realmente saltará a seus olhos serão as mensagens humanas. Algo como “Coragem e Gentileza”.
Fui apenas comprar uma bota sem personagem.
E tive uma aula sobre consequências de escolhas, ativismo e luta contra o sexismo e a estereotipia do mundo das princesas.
Dada por uma menina de 4 anos. Com nome de ativista feminista marxista alemã: Clara.
Ela pode ser quem ela quiser: uma princesa artesanal ou uma guerreira “minja” – que não pode arrumar o quarto porque está em issão. Ela pode usar azul, rosa, preto, roxo e qualquer cor que ela quiser.
Ela, como todas as crianças, não precisa de produtos licenciados.
E não merece ser massacrada por eles.
Texto anteriormente publicado do excelente blog Cientista que Virou Mãe: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2015/04/cor-de-rosa-princesas-e-claras.html
(*) Lígia é bióloga, mestre em psicobiologia, doutora em farmacologia, área que deixei após se tornar mãe. Estimulada pela maternidade, mudou de área, de foco e de vida, e hoje faz um novo doutorado, agora em Saúde Coletiva. É pesquisadora da assistência ao parto no Brasil, da violência obstétrica e da medicalização da infância e do corpo feminino. É mãe da Clara e esse é o mais relevante dos seus títulos, pois foi ele quem a modificou verdadeiramente. Ela a inspira, todos os dias, a olhar a vida e os seres humanos por outro prisma, a lutar pelos direitos das mulheres e a conectar pessoas que buscam criar seus filhos de maneira afetuosa e não violenta.
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