outros / 18 de setembro de 2020

Reflexões jurídicas acerca das repercussões do fechamento das escolas na saúde mental das crianças e adolescentes durante a pandemia da Covid19

* Texto especial para o Milc de Melissa Areal Pires

Segundo dados publicados no último dia 8 de setembro de 2020, em relatório produzido pela OCDE, o Brasil foi considerado um dos países com mais tempo sem aula durante a pandemia da Covid-19. A edição de 2020 do relatório Education at a Glance comparou dados de 46 países (38 membros da OCDE mais Brasil, China, Rússia, Índia, Indonésia, Argentina, Arábia Saudita e África do Sul) e constatou diversos obstáculos do país para promover a reabertura de escolas e universidades.

Prevendo o impacto desse cenário na economia, o relatório da OCDE destaca que a suspensão das aulas representa perda de aprendizado, que reflete em perdas de habilidades e, consequentemente, há reflexo na produtividade. “O impacto relativo sobre o PIB pode ser de 1,5% em média até o final do século”, afirmou a OCDE.

Verifica-se, portanto, a necessidade de um urgente diálogo entre autoridades educacionais e de saúde, em todos os níveis governamentais, para debater a reabertura das escolas e universidades, pontuando a OCDE que os benefícios inquestionáveis aos estudantes, à economia e às famílias gerados pela reabertura de escolas e universidades “precisam ser cuidadosamente ponderados com os riscos à saúde”.

Em meio a essa realidade, foi sancionada, no último dia 27 de agosto, a lei 8991/2020, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, prevendo a possibilidade de opção pelo ensino remoto até a descoberta da vacina ou medicamento eficaz contra a Covid-19, valendo tanto para as escolas da rede pública quanto da rede privada.

É nítido que a promulgação dessa lei é reflexo do medo de que, com o retorno das aulas presenciais, estudantes sejam obrigados à exposição à contaminação, o que colocará em risco sua própria saúde e a de seus familiares, bem como contribuirá para nova onda de contágio. Assim, essa lei foi promulgada com o objetivo de garantir, no caso de retorno presencial das aulas, a segurança dos profissionais da educação e dos alunos e, ao mesmo tempo, não prejudicar o aluno que não deseja se expor e que tem o direito de receber ensino adequado.

A partir dessa lei, as escolas públicas e privadas do Estado do Rio de Janeiro, que decidirem retomar as atividades letivas presenciais ou adotar regime de rodízio ou similar, ficam obrigadas a garantir a opção por atividades de ensino e de aprendizagem remotas, até que seja oficialmente disponibilizada vacina ou medicamento, comprovadamente eficaz, contra a Covid-19.

A lei também prevê que o poder público tome todas as providências necessárias para viabilizar, na rede pública, as condições para que os alunos que comprovadamente não disponham de recursos tecnológicos, possam, de fato acompanhar as aulas remotas e possam usufruir da opção que foi garantida por lei. A segunda previsão normativa relevante é a de que a escola deverá assegurar, aos profissionais da educação, programas de formação continuada sobre temas e metodologias relacionados ao processo de ensino-aprendizagem desenvolvido por meios remotos.

A lei 8991/2020 também prevê que os conteúdos ministrados em atividades remotas de ensino sejam idênticos ou, no mínimo, equivalentes aos conteúdos ministrados em aulas presenciais, inclusive quanto ao material pedagógico. Prevê, também, que as atividades de avaliação sejam implementadas através de plataformas digitais, com base em provas, testes ou outras formas de exame, realizados em tempo real ou não, de acordo com as diretrizes pedagógicas fixadas pela instituição de ensino.

A promulgação desta lei representa mais uma tentativa de adequação do sistema educacional à realidade imputada, pela pandemia da Covid19, às crianças e adolescentes. São diversos os aspectos e pontos de vista a serem debatidos em virtude da promulgação da lei. Concentrarei, nesse momento, a avaliação dos questionamentos sobre retomada de aulas presenciais e ensino remoto sob a perspectiva da saúde mental das crianças e adolescentes que estão, desde março de 2020, privados da participação de encontros presenciais e com amigos, privados das aulas adequadas, das práticas esportivas coletivas e de outras atividades fundamentais para o seu desenvolvimento e bem-estar.

A Constituição Federal do Brasil prevê, no artigo 227, ser dever da família, da sociedade e do Estado a seguridade, à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nossa Carta Magna também prevê, no art. 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A covid-19 mudou de forma muito drástica o cotidiano da vida de toda a humanidade, especialmente das crianças e adolescentes, impactando suas rotinas e as redes de apoio e proteção que sempre estiveram à disposição para protegê-las, por força dos mandamentos constitucionais acima mencionados.

A quarentena e o fechamento das escolas foram motivo de estresse para pais e responsáveis e, segundo a Nota Técnica “Proteção da Criança durante a Pandemia do Coronavírus”, emitida pelo The Alliance for Child Protection in Humanitarian Action, grupo interagências de nível global liderado pela UNICEF que se concentra no estabelecimento de padrões e na prestação de apoio técnico e orientação aos atores no campo da proteção da criança em cenários humanitários, a realidade de distanciamento social escolar tornou as nossas crianças mais vulneráveis à violência e ao sofrimento psicológico.

A humanidade ainda busca alternativas seguras e legais para minimizar as graves consequências para a saúde mental das crianças e adolescentes que estão sendo marginalizados e discriminados, especialmente aqueles cujos pais ou responsáveis não tiveram com quem contar e precisaram parar ou reduzir o tempo dedicado ao trabalho, ou ainda aquelas cujas famílias já são socioeconomicamente excluídas, as quem vivem em condições de extremo risco e as crianças com algum tipo de deficiência.

A lei estadual tratada nesse artigo, que autoriza os pais a optarem pelo ensino remoto até a descoberta da vacina ou medicamento eficaz contra a Covid-19, é uma dessas alternativas, pois, ao mesmo tempo em que tenta controlar a propagação da doença, privilegia medidas que contribuam para a proteção integral das crianças e adolescentes, embora certamente não resolva de forma definitiva o problema da garantia constitucional de acesso a educação durante a pandemia, vez que são muitas as dificuldades de implementação de ensino remoto de qualidade, bem como não deverá significar imediato restabelecimento da saúde mental, tanto dos profissionais da educação, quanto dos alunos, abalada por tanto tempo de isolamento social e afastamento do ambiente escolar.

O relatório “Acessibilidade do aprendizado remoto”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado no último dia 27/8/2020, concluiu que 3 em cada 10 crianças em idade escolar, especialmente aquelas em idade pré-escolar, estão sem acesso ao ensino remoto durante a pandemia. Esse índice representa 463 milhões de crianças em todo o mundo, desde a pré-escola até o ensino médio, sendo certo que a maior parte (72%) é de famílias pobres.

Segundo a entidade, o fechamento das escolas atingiu 120 milhões de crianças em idade pré-escolar (70%), as quais, infelizmente, não foram privilegiadas pela superação dos desafios e limitações do ensino online.

No ensino fundamental, aproximadamente 1/3 dos estudantes dos primeiros anos deste ciclo (217 milhões) e 24% (78 milhões) dos estudantes do ciclo final estão sem educação formal adequada.

Os prejuízos para os estudantes do ensino médio foram proporcionalmente menores: 48 milhões de adolescentes (18%) não tem acesso aos recursos tecnológicos fundamentais para o ensino remoto.

Enquanto isso, para que leis como essa do Estado do Rio de Janeiro saiam do papel e representem, de fato, garantia de resguardo do direito à educação de nossas crianças e adolescentes, é preciso superar diversos obstáculos, tais como, por exemplo, a ampliação do acesso a dispositivos eletrônicos, como computadores ou telefones celulares, e de conexões de internet, especialmente em áreas pobres e rurais. Ainda que superado esse primeiro obstáculo, há que se enfrentar outro desafio, pois, mesmo com ensino remoto e com acesso a tecnologia e a todas as ferramentas dentro de casa, há outras realidades domésticas que dificultam o aprendizado de forma remota bem como há a necessidade de superação da natural dificuldade de adaptação a esse novo tipo de aprendizagem, o que afeta sobremaneira a saúde mental dos alunos.

São muitos os desafios para implementação de um ensino remoto de qualidade, para a reabertura segura das escolas e para a recuperação da saúde mental dos alunos. Por esta razão, especialistas orientam que os governos e autoridades estejam atentos à taxa de contaminação e priorizem a reabertura das escolas e a retomadas das aulas presenciais de acordo com a redução dessa taxa. Enquanto a reabertura segura não é possível, a recomendação mais efetiva é a construção de um planejamento de atividades e estratégias para recuperar a aprendizagem perdida, incluindo as atividades via ensino remoto que visem o fortalecimento do sistema educacional, que necessita, urgentemente, se adaptar aos novos tempos.

Já é de conhecimento pelos governos, autoridades e instituições o enorme custo social da falta de implementação de políticas públicas emergenciais e adequadas no sistema educacional durante a pandemia da Covid19, em face da realidade inevitável de isolamento social, ameaça a vida e perdas econômicas. Tal cenário é desolador em virtude dos graves reflexos na saúde mental da população e, consequentemente, nas economias e sociedades nas próximas décadas, representando, segundo especialistas, uma segunda onda da pandemia.

Destaco a relevância da cartilha elaborada por pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde Cepedes/Fiocruz, a qual destacou, dentre as reações emocionais e alterações comportamentais frequentemente apresentadas pelas crianças durante a pandemia, a dificuldade de concentração, a irritabilidade, o medo, a inquietação, o tédio, a sensação de solidão, as alterações no padrão de sono e alimentação.

A cartilha traz, ainda, orientações para o cuidado e atenção com crianças e adolescentes nos novos tempos: “antecipando as preocupações e cuidados advindos do término da quarentena, é recomendado considerar que a possibilidade de transmissão do vírus não cessará, apenas se reduzirá o impacto quantitativo da onda de transmissão, o que faz necessário que a retomada da rotina, do trabalho e dos serviços de atenção à saúde seja planejada”.

Os pesquisadores alertam sobre a importância de acolher e trabalhar, com as crianças e adolescentes, de forma ampla, o assunto “pandemia”, promovendo debates sobre que foi vivido durante o período de distanciamento social, sobre os efeitos que eventualmente podem ainda persistir, tais como tristeza, medo da morte ou outras preocupações, destacando-se a relevância da criação de um novo ambiente de convívio para essas crianças e adolescentes que privilegie o compartilhamento de experiências de resiliência, solidariedade e compaixão.

É preciso, desde já, agir para minimizar os efeitos da “maior interrupção na educação da história da humanidade”, conforme afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, no último dia 04/08/2020, destacando, ainda, que o fechamento das escolas afetou mais de 1 bilhão de estudantes e, por fim, alertando que o mundo enfrenta “uma catástrofe geracional que poderá desperdiçar um potencial humano incalculável, minar décadas de progresso e exacerbar desigualdades enraizadas”.

Por tudo isso, medidas que privilegiem a dignidade da pessoa humana (princípio estruturante de todo o ordenamento jurídico brasileiro), previsto no art. 1, III da Carta Magna, e que representem, de fato, garantia de proteção dos mais vulneráveis, do direito à saúde, à vida e à educação, precisam ser tomadas pelas autoridades para minimizar o prejuízo de todos, especialmente de quem, dentre tantas dificuldades que não escolhem faixa etária, são mais vulneráveis no aspecto da educação: as crianças e adolescentes. Embora a taxa de mortalidade nessa faixa etária seja menor em comparação a outros grupos, como adultos e idosos, é preciso considerar que todas as crianças e adolescentes estão suscetíveis aos impactos psicossociais da pandemia. Algumas crianças e adolescentes são mais vulneráveis que outros, a depender de suas experiências de vida, o que deve chamar mais ainda a atenção dos profissionais da saúde e da educação, que lidam diariamente com oportunidades de transformação da rotina escolar.

(*)Melissa é advogada graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós Graduada em Direito do Consumidor e Direito Aplicado aos Serviços de Saúde, pela Universidade Estácio de Sá, com atuação profissional voltada para o Direito Médico e da Saúde e Direito do Consumidor. Conselheira da OAB/RJ – Subseção Barra da Tijuca. Presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/RJ – Subseção Barra da Tijuca/RJ. Membro da 1ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ. Colaboradora do programa “Reclamar Adianta”, com transmissão pela Rádio Bandeirantes AM 1360. Colunista do programa “Política Sem Rodeios”, com transmissão pelo Facebook e YouTube. Palestrante. Sócia fundadora do Areal Pires Advogados Associados.


Tags:  adolescentes covid-19 crianças educação escola melissaarealpires pandemia pergunteaespecialisa

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