Texto de R.M.*
“Eu quero aquele lanche feliz… tem um brinquedinho”. Aposto que muitos pais, como eu, também já ouviram essa frase ou algo similar de seus filhos na hora de escolher o que comer em alguma praça de alimentação pelo Brasil. Esse exemplo é manjado, mas tomei-o como medida para refletirmos sobre um assunto específico: que tipo de influência os meios de informação (mídia, propaganda etc.) têm na educação das crianças brasileiras e que tipo de concepção nos faz simplesmente aceitar que nossas crianças sejam submetidas a qualquer tipo de informação, sem controle, sem um discernimento claro do que pode ou o que não pode? Liberdade de expressão? Esse não pode ser um conceito válido nesses casos, pois não pode existir liberdade de expressão quando o objetivo da informação não é libertar, não é educar, mas sim condicionar. Também não dá pra aceitar o argumento de que são os pais que deveriam tomar conta da informação que chega aos seus filhos, pois isso não é simplesmente possível em uma sociedade em que as crianças precisam obrigatoriamente frequentar a escola e onde a mídia está presente em todo espaço público.
Tive outro dia a experiência de assistir em uma televisão ligada na sala de espera de um pronto socorro (repleto de crianças), uma matéria do programa Domingo Legal sobre um “fenômeno do funk” chamado MC Gui. Antes de falar especificamente sobre o assunto, gostaria também de relatar que tive diretamente a oportunidade de trabalhar com crianças e adolescentes em uma favela de São Paulo onde o funk foi um assunto frequente, pois ficava óbvio para mim e para os outros educadores da ONG que a influência do funk no comportamento das crianças era considerável e que não existia, por parte delas, uma consciência clara do significado das letras, tampouco do quanto essas mensagens modificavam a maneira delas enxergarem o mundo e o outro. As piores influências que verificamos eram relacionadas principalmente à questão da autoimagem da mulher e da banalização da violência e da sexualidade. O fato era que as meninas passavam mesmo a ser vistas como objetos sexuais e os meninos passavam a manifestar comportamento arrogante, desrespeitoso e de linguagem obscena para com as meninas. Isso foi o que observamos de pior, para não falar de outras influências. Como estou falando de crianças de 8 a 14 anos, a maioria delas (eu não me recordo de uma só que tivesse algum senso crítico mais apurado sobre o assunto) não compreendia o simples fato de que aquele tipo de música propaga ideias que não condizem com uma visão respeitosa sobre o outro.
Em São Paulo, o funk é largamente admirado por meninas e meninos pré-adolescentes e adolescentes, que dia a dia entopem a mente com mensagens que degradam a imagem da mulher e estimulam o consumo. Isso não é novidade para ninguém. A novidade, agora, é que essas meninas e esses meninos agora têm também um ídolo do funk que os representa. E volto ao que vi na televisão, no espaço público de um hospital, à tarde, em uma sala cheia de crianças: um funkeiro de 14 anos (pode tranquilamente se passar por menos idade), cantando o mesmo tema, a mesma mensagem que coloca a mulher como ser inferior não pensante que só deseja carros, sexo e fazer o papel de submissa ao homem (nesse caso, menino!).
Os clipes onde botaram esse garoto como protagonista, e veiculados nesse programa, mostram as mesmas cenas já muito repetitivas nesse estilo, com mulheres de biquíni em posições eróticas, muita bebida alcóolica e a velha e tosca ostentação, os carrões, os iates etc.
Pergunto-me, primeiramente, pois não entendo muito de legislação, se isso é permitido. Vincular um adolescente a cenas de conotação sexual com adultos e bebida alcóolica, na mídia, em um programa domingo à tarde, pode? Se pode, eu não estou entendendo mais nada. Se não pode, tem alguma coisa errada com os órgãos que fiscalizam esse tipo de manifestação e, pior, com a sociedade que as aceita.
Depois de um tempo, também reparei que esse menino funkeiro está realmente fazendo moda, pois vejo nas escolas outros meninos se vestindo da mesma maneira, andando com o mesmo jeito e por aí vai. Na internet, não encontrei nada, nenhuma manifestação, nenhum pai indignado, nenhuma mãe preocupada. Somente aceitação, louvações ao imenso talento do menino e, é claro, ao “excelente” exemplo que ele dá para as novas gerações, como o fato dele ter largado a escola para poder continuar ganhando o seu alto salário com os shows que faz pelo Brasil.
Para quem se interessar pelo talento prodígio, seus clipes estão abertos no YouTube.
É necessário, neste momento, que a sociedade se mobilize na conscientização dessas influências que em nada auxiliam o desenvolvimento das novas gerações. É preciso debater e é preciso pressionar os órgãos públicos a tomarem providências. O governador Alckmin já não nos ajudou vetando o projeto de lei que restringia a divulgação de publicidade voltada para crianças, e as consequências todos nós continuamos a colher, seja na péssima educação alimentar que a mídia veicula, seja nos valores que deturpam a visão de humanidade que chegam aos olhos, ouvidos e corações de crianças que ainda não desenvolveram discernimento suficiente para saber o que de fato as influencia.
De que adianta destinar aumento de verba para a educação se a cultura de massa não estimula o desenvolvimento intelectual, não ajuda na formação de valores e dificulta o trabalho das famílias na educação de uma geração mais solidária e humana?
Continuaremos com essas contradições ou tomaremos providências? Aceitaremos a propagação da ignorância ou reivindicaremos uma transformação social também no nível da cultura e dos valores humanos?
*R. é psicólogo, educador e pai de três.
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